A transformação da mentira em uma base discursiva, tornou o debate político um campo minado, onde a sensatez e a ciência perdem voz e vez na execução de políticas públicas
por Creomar de Souza em 17/03/21 20:20
George Orwell, em seu ensaio sobre a política e a língua inglesa, nos interpela com uma constatação que parece ter sido escrita para o Brasil contemporâneo. Para o autor de 1984, a “linguagem política – e com variações isso é verdade para todos os partidos políticos, de conservadores a anarquistas – está formatada para fazer mentiras soar verdadeiras e o assassinato parecer respeitável, e dar uma aparência de solidez ao que não passa de puro vento”.
Sempre se mentiu na política, especialmente na brasileira. Isso não é apanágio do atual governo e nem de governos passados. A teledramaturgia nacional inclusive, caracteriza com recorrência o mentiroso padrão da política nacional e dentre estas, Odorico Paraguaçu é a que mais chama atenção. Ególatra, mentiroso e carismático, preocupado com a inauguração de um cemitério em uma cidade acometida por longevidade. Odorico usa todo tipo de expediente possível para alcançar seus objetivos, com um final surpreendente que merece uma visita do leitor à interpretação de Paulo Gracindo.
Aproveitando-me aqui do adágio “a vida imita a arte”, é possível constatar com preocupação que em passado recente a curva ascendente do uso da mentira se acelerou. Isto quer dizer, o esforço de tornar tangível aquilo que não possui substância alguma – parafraseando Orwell – foi assumindo contornos patológicos. Longe de tentar explicar esta transformação em 500 palavras, a constatação é a de que nos longos dias de pandemia, mentiras e notícias falsas se fundem em “narrativas” ideológicas nocivas ao próprio exercício da cidadania.
E qual o impacto da mentira turbinada pela internet sobre a vida das pessoas comuns? A resposta é simples: dor, sofrimento e morte.
Caso você leitor não acredite nesta resposta, te convido a rememorar comigo alguns argumentos que repetidos “ad nauseam” por políticos e pessoas com diploma de medicina auxiliaram na construção desta caminhada fúnebre. Do tratamento precoce ao vírus chinês, da afirmação de que máscaras faziam mal à saúde até a confusão proposital entre responsabilidade coletiva e liberdade individual, são variados os exemplos de ações que sem nenhuma base científica concreta corroeram pontes e diálogos fundamentais para alcançarmos aquilo que realmente importava: conscientizar pessoas da gravidade da situação, fechar contratos para garantir o maior volume possível de vacinas, e fomentar ao máximo medidas de mitigação (distanciamento social, higiene, máscaras) do avanço da covid-19.
Diante da marcha firme que o país constrói rumo aos 300 mil mortos pela pandemia, é importante compreender que as mentiras, sejam elas contadas de forma consciente ou reproduzidas inconscientemente tem um efeito nefasto na vida cotidiana. Ao afetar pessoas que são operadoras ou destino dos mais variados tipos de políticas públicas, da saúde à política externa, as mentiras que se tornam mantras ideológicos nublam mentes e impedem uma perfeita compreensão da realidade dura em que estamos inseridos. O gasto de energia de tomadores de decisão, que tentam assentar seus pés sobre um terreno pantanoso e instável, tem como produto as mortes de brasileiros por falta de UTIs, sem acesso a oxigênio, privados de vacinas.
A realidade é um muro intransponível e há a necessidade de evitarmos uma repetição de catástrofes como a vivida neste período. Portanto, exige-se uma refundação da política em novas bases, repelindo a mentira e responsabilizando os mentirosos compulsivos que atuam em todos os níveis de governo, no setor privado e nas corporações. Talvez assim, quem sabe, ao exigirmos a prestação de contas dos responsáveis, recuperamos nossa humanidade, hoje vilipendiada, e ganhamos a capacidade de utilizar a verdade e a ciência como bases para as políticas públicas e decisões informadas da cidadania.
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