O espetáculo nonsense em que se transformou o depoimento do Sr. Luciano Hang à CPI da Pandemia é apenas sintoma de um processo mais profundo de degradação continuada das estruturas, percepções e simbolismos das instituições democráticas
por Creomar de Souza em 19/10/21 11:53
O que move a democracia no século XXI? Esta pergunta é bastante importante para compreendermos alguns dos desafios que se colocam para a sobrevivência do sistema democrático em uma realidade marcada por infodemia, fakenews e autoritarismo narrativo. A resposta mais objetiva possível é a compreensão de que democracia é sustentada por apoio popular, que se expressa, basicamente, em duas ações – o voto e o engajamento cotidiano do cidadão.
A partir deste pressuposto é possível dizer que a democracia como conhecemos é um desenho institucional montado para atender uma dinâmica social de espaços civilizatórios do século XVIII e XIX. Naquele momento, sobretudo em sociedades industriais, se construiu uma lógica, emulada por variados experimentos democráticos ao redor do mundo, de que para fazer parte do jogo político se fazia necessário incorporar determinados códigos e tradições. A adesão aos simbolismos e marcadores de conduta passaram a ter a função de civilizar o diálogo e ordenar a apreciação de demandas, gerando em muitos casos, um fortalecimento da crença de que as instituições e o sistema funcionavam.
A espiral positiva de maturação do debate público se manifestaria concretamente na forma como os atores respeitariam uns aos outros e reforçariam a importância da autoridade construída dentro de uma regra de consenso e diálogo regulatório. Se, em termos práticos, o desenho desta prerrogativa ao longo do tempo sempre encontrou desafios, era possível dizer que mesmo em democracias de média qualidade, como a brasileira, existia um consenso mínimo entre os atores políticos acerca da necessidade de respeito a determinadas regras e procedimentos.
Porém, como tudo na vida, as situações pessoais e compromissos mudam sempre que há um esvaziamento na crença de sua funcionalidade. E, no Brasil, em específico de meados da última década até o momento, se consolida uma percepção de que o respeito às regras, aos foros e aos ritos das instituições é perda de tempo. Aos que defendem este posicionamento, a ideia de que se faz necessária a devida cerimônia para com aqueles que estão investidos em cargos públicos só é válida se cabe em suas conveniências cotidianas.
Neste sentido, a presença do Sr. Luciano Hang na CPI da Pandemia foi um retrato exato de como o deboche passou a ser parte do jogo político e institucional. Que se faça justiça antes de tudo ao fato de que os Senadores deram palco a quem o buscava e com raríssimas exceções não conseguiram ao menos compreender o jogo que o Sr. Hang foi disputar. Este, por sua vez, entendendo que o debate político se faz cada vez mais nas redes sociais baseadas na internet, vestiu-se como uma caricatura daqueles que criticava.
Do terno em verde e amarelo a rejeição expressa de usar os pronomes de tratamento adequado aos Senadores, o Sr. Hang implodiu a bússola que guiava os trabalhos da CPI durante seu depoimento. Suas falas e ações, verificadas e esquadrinhadas por agências de checagem a posteriori, passaram a sensação de que aqueles que deveriam ouvi-lo não estavam preparados para o desafio. E aqui reside uma ameaça clara para o aprimoramento da qualidade de nossa democracia, a construção de uma percepção coletiva de que os representantes não possuem as condições necessárias para a execução das tarefas para as quais foram designados.
Para aqueles, portanto, que temem tanques e policiais nas ruas fechando o Congresso e os Tribunais, fica o aviso. O maior risco para a qualidade da democracia vem da descrença, do escárnio institucionalmente consentido para com os ritos e o decoro. A leniência para com o deboche e o escárnio é um veneno que corrói a República de forma lenta e consistente. E seus resultados são potencialmente mais devastadores do que os medos inconscientes que permeiam os corações daqueles que ainda acreditam em debate público analógico. O jogo mudou e a única forma de efetivamente proteger a democracia é compreender os dilemas que uma sociedade aberta enfrenta e construir posicionamentos efetivamente firmes que garantam a sua existência.
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