Creomar de Souza

Crime e Castigo

A ideia de que um ator político qualquer é superior as regras do jogo institucional, é um veneno para a ordem democrática

por Creomar de Souza em 26/02/21 20:35

Assisti a um filme indiano chamado Tigre Branco e o que mais me chamou atenção foi o enredo:  um jovem pobre, Balram Halwai, comete um crime para romper o cativeiro da pobreza mental e material que o cerca. Ao terminar o filme, automaticamente, me conectei ao clássico de Dostoievsky, Crime e Castigo e as concepções de vida do protagonista, Raskolnikov, diante de sua condição de pobreza e necessidade. 

O ponto de ligação entre os protagonistas é a crença em sua especialidade, pedindo licença a Balram, me foco a partir daqui em Raskolnikov e sua percepção de que as pessoas se dividiam em duas categorias: ordinárias e extraordinárias. As primeiras deveriam se acomodar, ser obedientes, cumprir fielmente a lei. Os extraordinários, por sua vez, eram visionários, destinados a realizar grandes feitos, os verdadeiros protagonistas de seu próprio destino e até da humanidade. Esses cometeriam crimes e tripudiariam sobre convenções sociais, mas acabariam redimidos pela história. Criminosos hoje, porém celebrados com estátuas de bronze amanhã.

Raskolnikov acreditava, no seu íntimo, que sua vida teria essa transcendência, a exemplo de Napoleão Bonaparte. Infelizmente para ele, suas fantasias não eram nada mais que isso e as consequências para sua vida foram sérias. Partindo da história ambientada na Rússia, não é difícil traçar um paralelo com muitos dos líderes políticos no Brasil contemporâneo, sem distinções ideológicas ou partidárias. Em primeiro olhar, é possível afirmar que muitos deles acreditam que estão acima do bem e do mal, que cumprem um desígnio transcendental, uma missão que lhes permite atropelar instituições, normas legais e preceitos morais. Alguns dirão que o que os motiva é a perspectiva de amealhar fortuna ou poder político, quando não ambos. Creio que esse é apenas um dos lados da moeda.

Imagem de Raskolnikov, personagem de "Crime e castigo"
Imagem de Raskolnikov, personagem de “Crime e castigo”. Foto: reprodução do estúdio Mosfilm

Para que um sistema de corrupção estrutural ou o desprezo ativo pelas instituições do Estado de Direito deite raízes, é preciso mais do que o interesse egoísta no enriquecimento pessoal e no controle de recursos políticos. É necessário também que tenhamos um bom contingente de Raskolnikovs, capazes de se autoenganar e de enganar os demais, vendendo com certo sucesso a balela de que seus atos antidemocráticos, na verdade, servem para salvar as instituições democráticas; que a corrupção que praticam com gosto, na verdade, não visa engordar seu patrimônio, mas irrigar máquinas partidárias encarregadas de implementar seu “projeto de país”; que o aparelhamento do Estado não constitui nepotismo ou favorecimento, mas garantia de execução do programa vencedor nas urnas.

A literatura e o cinema por vezes ajudam a iluminar aspectos da realidade que a Ciência Política seria incapaz de explicar. Na maioria dos casos, porém, a realidade, ao imitar a arte, consegue superar a trama ficcional tanto em criatividade quanto na crueza de suas consequências. Enquanto nossos Raskolnikovs insistem em suas fantasias, a realidade se impõe: um quarto de milhão de mortes pelo COVID-19, a vacinação avança a passos de cágado e a economia sofre solavancos desnecessários – como a situação na Petrobras -, passando a imagem de uma República com nenhuma segurança jurídica.

Os Raskolnikovs tupiniquins, por mais que fantasiem suas ilusões de elevação, de fato, mostram-se incapazes de enfrentar os desafios da realidade. E a conta dessa trama será paga por todos, com um país mais pobre, doente e isolado internacionalmente. No futuro, com sorte, estas lideranças serão lembradas apenas como uma deprimente nota de rodapé na nossa trajetória histórica, cuja tendência positiva ou negativa dependerá de nossa capacidade como sociedade de livrar-nos dos salvadores da pátria e fortalecer a boa e velha democracia representativa.

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