Creomar de Souza

Quando abrimos a Caixa de Pandora?

Toda reflexão sobre o atual estado da política nacional deve passar pelo seu ponto de origem. Uma vez que não há até responsabilização pelos equívocos cometidos no passado, cabe um olhar meticuloso sobre os riscos que estes lançam sobre o nosso futuro.

por Creomar de Souza em 16/12/21 12:10

Democracias são a pior forma de governo, com exceção de todas as outras. A frase de Winston Churchill serve para ilustrar o dilema que se enfrenta cotidianamente na vivência em um regime democrático. De um lado, tem-se a necessidade do cidadão de participar e de construir consensos bem-informados sobre temas de interesse comum. De outro, a necessidade dos políticos de colocarem à prova suas concepções e ideias de mundo em um ambiente competitivo, marcado por eleições periódicas.

Em termos ideais, esse dilema teria como resultado a construção de um sistema de convivência tendencialmente harmônico, que possibilitaria a construção de soluções coletivas para problemas vistos como coletivos. Porém, olhando em perspectiva, parece que em algum momento as coisas pararam de fluir e se perderam dos marcadores originalmente desenhados. E isto nos leva a pergunta: onde nos equivocamos?

Pensando no passado recente brasileiro, e no processo de degradação da regra do jogo, é possível estabelecer um ponto de partida no ciclo eleitoral de 2014. Naquele momento, a assunção do candidato derrotado de questionar os resultados e a validade da regra adubou uma semente dormente de contestação e inconformidade.

Compreenda, este texto e este autor não condenam o direito legítimo à indignação e ao inconformismo, porém, quando se contesta sem provas consistentes um determinado evento, isto abre espaço para a criação de uma tempestade cujos resultados são imprevisíveis. O fato é que por mais que seja dolorida uma derrota, ou que haja questionamentos à forma pela qual as políticas públicas devam ser construídas, a lógica democrática prescinde que isto seja feito dentro de determinados marcadores.

Imagine, por exemplo, o que aconteceria se os jogadores de um time de futebol diante de uma derrota em uma final, passassem a usar as mãos para tentar alterar o placar. Sem a interferência de um árbitro firme e comprometido com a regra, o que pareceria insanidade, tornar-se-ia usual e mudaria profundamente o resultado do jogo. O ponto, portanto, é que uma vez que a Caixa de Pandora foi aberta se perderam os pudores e constrangimentos para contestar os elementos de base do jogo, passamos a caminhar sem direção.

Como resultado direto deste processo, se verificou uma erosão consistente do debate público, da capacidade dos governos de produzirem políticas públicas e da sociedade em separar o principal do acessório. Os exemplos desta entropia cognitiva podem ser identificados com facilidade a partir de uma verificação rápida em sites de busca. E, neste aspecto, o ano de 2021 foi pródigo em transferir do imaginário popular para as páginas dos jornais as situações que não ocupariam espaço nem mesmo nas crônicas diárias de Macondo.

Da ação deliberada de um grupo em desligar o disjuntor de energia de um posto de saúde em Santa Catarina – destruindo todo o estoque de vacinas lá armazenado – à realização de uma disputa de “Vale-Tudo” entre dois políticos no Amazonas, trocam-se as ideias pelas agressões e as palavras pelos pontapés. E diante da entropia que afeta o debate político e a nossa capacidade de realizar e inovar na solução de problemas comuns, não deixa de ser preocupante pensar naquilo que o futuro nos reserva.

O ponto é que para além do contexto eleitoral, que será marcado por muito embate, imprevisibilidade e tensão, é possível compreender que quem quer que seja o ocupante do Palácio do Planalto em 2023, terá vida muito difícil. Este contexto, portanto, exige a responsabilidade daqueles que de fato se importam com a democracia de construir soluções e consensos para além de suas próprias agendas de preferência. A falha na construção deste processo, certamente resultará em um cenário trágico onde, sobretudo, os mais pobres serão vítimas preferenciais dos equívocos e da mesquinhez dos donos do poder.

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