Não há nada mais perigoso para um ambiente de liberdades individuais plenas que assunção de crenças políticas como uma verdade absoluta. O risco de transformar um posicionamento em profissão de fé é a banalização da ideia de que vale o uso de qualquer artifício para se derrotar o rival político, transformado em inimigo em um campo de batalha
por Creomar de Souza em 02/09/21 10:01
Qual o limite da crueldade humana em nome de uma causa? Que tipo de barbaridade pode ser justificada a partir de uma crença ferrenha em uma ideologia? Muitas são as tentativas de responder tais questionamentos, de Erich Fromm à Hannah Arendt, não foram poucos os pensadores que buscaram compreender a construção do arbítrio ideologicamente justificado. Entretanto, dentre os vários caminhos possíveis para compreender o peso da violência justificada e a imbecilidade que envolve instigar a guerra, ninguém parece ter sido tão feliz quando Ernest Hemingway em seu retrato literário da Guerra Civil Espanhola intitulado “Por Quem os Sinos Dobram”.
Ao narrar a trajetória de Robert Jordan como um voluntário nas brigadas republicanas durante o conflito espanhol, Hemingway se presta a dois serviços: o primeiro é o exercício autobiográfico de expiação dos demônios encarnados por ele visualizados durante seu tempo de engajamento na luta fratricida. O segundo, mais importante para este texto é o de tecer um retrato bastante cru dos impactos negativos que homens empoderados por causas podem causar na vida de cidadãos comuns.
Neste sentido, a descrição da crueldade e da violência perpetrada tanto por franquistas quanto por republicanos é um alerta importante àqueles que a espada é possível construir um cenário de paz sobre um exército de cadáveres. Esta reflexão em específico parece bastante importante para o Brasil atual. Sobretudo quando homens públicos que buscam se travestir de figuras míticas convocam seus fiéis para demonstrações de força que podem se transformar em verdadeiros abatedouros de vidas humanas.
O fato é que se a democracia permite a expressão de ideias e a concorrência destas em prol de angariação de preferências, é necessário também compreender que esta liberdade pode ser utilizada para destruir direitos. O país hoje se encontra diante de uma série de encruzilhadas e, tal qual a Espanha pré-guerra civil. A instabilidade política, a falta de confiança na capacidade das instituições em solucionar problemas e, sobretudo, a tentativa de lideranças autoritárias de se colocarem como focos exclusivos de solução de problemas criam um precedente perigoso que alimenta sentimentos negativos e banaliza a ideia do direito de existência do diferente.
A confusão que propositalmente se estabelece entre liberdade de expressão e irresponsabilidade de expressão tem um propósito, a ideia de incutir medo, instabilidade e banalização da violência como instrumento de pacificação. Neste sentido, Popper definiu de maneira bastante precisa a necessidade de que as sociedades democráticas têm de reconhecer com facilidade seus inimigos e criar mecanismos dentro da lei para que eles sejam cerceados na sua tarefa de destruir liberdades e provocar o caos social.
Aqui faz-se importante compreender que a questão não é de posicionamento progressista ou conservador. O cerne está no compromisso feito de respeitar as regras do jogo democrático e compreender que nenhum individuo é superior a elas. Porém, se os indivíduos investidos de funções institucionais, sobretudo aqueles em posição de deter o arbítrio e a erosão do prédio democrático se omitem, o risco de excessos justificados em salvacionismos de ocasião cresce na mesma velocidade que o exercício repetitivo de propagação da falácia e da transferência de ônus causados por omissões.
Diante do fato irremediável de que não haverá moderação ou bom senso dos indivíduos envolvidos na convocatória ao conflito, fica aqui o apelo àqueles que são indivíduos comuns e que, por consequência, serão os mais diretamente afetados pela violência das grandes causas libertadoras. Não se torne uma presa fácil daqueles que propagam o caos sob a justificativa de que será alcançado um paraíso na terra. Afinal, para aqueles que mandam os jovens e incautos à morte, a vida já é um elísio terrenal desde que seu poder seja mantido ao custo da vida e dos sacrifícios alheios.
Comentários ( 0 )
ComentarEntre no grupo e fique por dentro das noticias!
Grupo do WhatsApp
Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo.
ACEITAR