Creomar de Souza

política e religião

E o Estado, é laico?

Historicamente, o Senado Federal é mero validador das indicações dos Chefes de Governo ao Supremo. Porém, questões políticas outras tornaram a validação do nome de André Mendonça uma procissão que trazem à baila a necessidade de uma discussão sobre a laicidade do Estado

por Creomar de Souza em 02/12/21 20:57

O processo de sabatina de André Mendonça ao STF foi moroso. A insistência do Senador Davi Alcolumbre em utilizar suas prerrogativas para retardar ao máximo possível a sessão que escrutinaria o futuro Ministro da Suprema Corte chegou a levantar dúvidas entre aqueles que não acompanham a política nacional em termos da aprovação do segundo indicado por Bolsonaro ao órgão máximo do judiciário nacional. Em meio a enorme procissão que se tornou a jornada do futuro Ministro à cadeira que outrora foi de Marco Aurélio Mello, um sem-número de argumentos e reflexões foi levantada acerca de quais seriam os motivos e preocupações que cercariam o nome do postulante a um cargo tão importante.

Dentre estas, sem sombra de dúvidas, a que mais levantou diálogos tinha a ver com as filiações religiosas de Mendonça. Declaradamente evangélico, ou como o descreveu em certo momento Jair Bolsonaro, “terrivelmente evangélico”, André Mendonça abraçou a ideia do Chefe do Executivo ao declarar após a sua aprovação que esse “é um salto para um homem, mas na história dos evangélicos do Brasil, um salto”.

andré mendonça

Este posicionamento, que possivelmente cause espécie em alguns setores da sociedade nacional, revela, por si, algo bastante importante em termos de conjuntura política e acesso aos recursos de poder simbolizados pelas instituições. Ora, em primeiro olhar, não é necessária muita perspicácia para compreender que a ideia de uma laicidade estatal é muito mais um desejo do que uma realidade. No caso específico do Brasil, esta percepção não resiste a uma mera abertura de carteira. Cabe lembrar que em todas as cédulas de real – que andam escassas para a população – há a inscrição “Deus seja louvado”.

Ora, se o dinheiro que é fruto do monopólio estatal de dar valor a transações comerciais está marcado com uma expressão religiosa, onde de fato está essa laicidade? Esta pergunta, propositalmente retórica, serve para convidar você leitor para um elemento importante desta reflexão, que é a disputa por poder e espaço político que grupamentos evangélicos neopentecostais têm conduzido ao longo dos últimos anos. Do início dos anos 2000 até o presente momento, nenhum outro grupo social nacional foi objeto de maior escrutínio por parte da ciência política que os evangélicos.

A tentativa de compreender seus interesses, olhares e posicionamentos, levou à elaboração de teses, livros e outras reflexões. Ao passo que a academia tentava entender este fenômeno por meio de um olhar que em alguns momentos beirava os primórdios da antropologia, estes assumiram de maneira muito madura a ideia e a convicção de que possuíam um projeto de país e que este deveria ser levado adiante. E aqui, em específico, merece atenção o fato de que André Mendonça, diferentemente de outros indicados para vagas ao Supremo, não está em uma jornada solitária.

Ao contrário, Mendonça é fruto de um projeto político que visa alterar a balança de poder nacional. Ao menos em termos de declarações, o novo Ministro é consciente disto e se assume como parte deste movimento. E aqui, é importante ter em mente que não se pode incorrer no erro de colocar todos os evangélicos na mesma caixa analítica. O que se pode verificar é que há uma corrente majoritariamente conservadora, esta sobremaneira preocupada com um afastamento da sociedade de valores angulares, tais como a preservação da família em um recorte visto como tradicional.

Isto posto, os atores políticos envoltos neste circuito agem de maneira a buscar legitimamente por espaço. E o fato é que, agradando ou não outros eleitores, estes atores estão em disputa e precisam ser reconhecidos como legítimos. Do contrário, se tornam presas de extremismos e discursos de confrontação, que atendem obviamente àqueles que desejam seus votos, ao mesmo passo que diminuem a qualidade do debate público.

O fato é que o Estado Brasileiro nunca foi laico. Do dinheiro aos tribunais, há uma enorme simbologia cristã e católica para marcar os limites da laicidade de Terra de Vera Cruz. O ponto é que à medida que este debate não é feito de forma inclusiva, grupos com maior tração política podem ser levados a crer que há uma guerra santa em torno do futuro do país. E assim como o poder judiciário não significa a atribuição de justiça equânime, a ideia de laicidade é constrangida pelas escolhas individuais e coletivas, que no caso brasileiro são significativamente religiosas para muitos.

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