No mercado de seguros de automóveis, por exemplo, uma baixa da sinistralidade, ou seja, um segurado que utiliza pouco o seguro, tem um desconto nos seus prêmios. Ocorreu isso com os planos de saúde? Não
por Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi em 07/05/21 16:17
Uma quantidade razoável da população brasileira, 47.615.162 pessoas em dezembro de 2020, 24,2% da população brasileira como um todo, porém mais de 30% da população em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, é beneficiária de planos privados de saúde, por iniciativa dos empregadores e empregados ou própria iniciativa dos indivíduos/famílias, a despeito da vontade ou do peso que isso representa no seu orçamento.
Relação, com poucas exceções (especialmente em alguns planos de autogestão em que há participação dos usuários em órgãos de gestão) absolutamente desigual entre grandes empresas de um mercado concentrado e beneficiários isolados ou agrupados em planos de administração, foi criada em 2000 a Agência Nacional de Saúde Suplementar/ANS com o objetivo de estabelecer certo “equilíbrio” nessa relação e “estabelecer o interesse público”.
Entender o papel dos planos privados de saúde durante a epidemia de COVID-19 e como tem sido a atuação dessas empresas deve ser analisado sempre tendo em vista que é um mercado regulado e que o governo, através da ANS, tem um papel fundamental neste processo.
Vejamos brevemente a dinâmica deste mercado, focando no período em que a crise econômica se fez presente com maior intensidade no país e o ano de 2020, especificamente, em relação ao ano anterior. Quanto aos beneficiários, entre 2016 e 2020 há um certa estabilidade em torno de 47,6 milhões de pessoas pois a grande queda de 3 milhões de vidas ocorreu justamente em 2016 em relação a 2014 e 2015. Entre 2019 e 2020 houve um pequeno crescimento de 583,7 mil vidas.
Mas, ao analisar os dados financeiros, verifica-se que em nenhum período houve retração de receitas, nem no ano de 2016 com respeito a 2015. Entre 2016 a 2020, as receitas passaram de 180 a 243 bilhões de reais, um crescimento de 32%. Entre 2019 e 2020 o crescimento foi de 6% (inflação do ano foi de 4,31%). As receitas apenas de contraprestação (ou seja, o que os beneficiários pagam) teve um crescimento ainda maior de 36% entre 2016 e 2020 e de 4% de 2019 e 2020. Mas quando analisamos as despesas assistenciais, vemos um dado muito significativo. As despesas assistenciais passam de 137 bilhões em 2016 a 160 bilhões em 2020, um crescimento de 17%, resultando numa sinistralidade (relação entre as despesas assistenciais e as receitas de contraprestação) em torno de 84% a 82%.
Mas, entre 2019 e 2020, as despesas assistenciais tiveram uma queda de 8%, uma economia para as empresas de planos de saúde de 14 bilhões de reais. Isso somente é explicado por uma redução significativa da utilização de serviços de saúde por parte dos beneficiários, pois, em um ano, nada leva a crer que as pessoas ficaram bem mais saudáveis, inclusive, pela covid-19.
Ou seja, toda a orientação, em parte correta, dada pelas autoridades sanitárias, para somente se buscar serviços de saúde quando absolutamente necessário e que teve por resultado o adiamento de procedimentos preventivos e monitoramento de doenças crônicos, com repercussões sobre a saúde das pessoas que ainda não foram devidamente dimensionadas, significou, para as empresas de planos de saúde, uma economia de 9% de suas despesas esperadas.
Tal economia reverteu para os beneficiários? No mercado de seguros de automóveis, por exemplo, uma baixa da sinistralidade, ou seja, um segurado que utiliza pouco o seguro, tem um desconto nos seus prêmios. Ocorreu isso com os planos de saúde? Não. A despeito da suspensão feita pela ANS de reajustes em 2020 para uma parcela de contratos, alegadamente em função de dificuldades dos consumidores pelas consequências econômicas da epidemia de COVID, ela autorizou, em novembro de 2020, um teto máximo de reajuste de 8,14%, válido para o período de maio de 2020 a abril de 2021. A explicação da ANS foi de que este reajuste observou a variação de despesas assistenciais entre 2018 e 2019, período anterior à pandemia e que, portanto, não apresentou redução de utilização de serviços de saúde. Os efeitos da redução serão percebidos no reajuste referente a 2021. Será?
Algumas medidas polêmicas que vinham sendo discutidos pelas empresas tiveram na epidemia um ambiente favorável para sua implantação, com destaque para a telemedicina. Em se passando a epidemia, ela permanece e como? Tendo em vistas as restrições que o Conselho Federal de Medicina colocou.
A guisa de conclusão, cabe pensar prospectivamente, que mudanças no mercado as empresas vislumbram pois desde 2018 as principais entidades representativas das empresas propõem mudanças na legislação do SUS de modo a viabilizar novas relações entre o público e o privado. Recente proposta do Ministério da Saúde, em consulta pública denominada Participa + Brasil, visando alterações nesta relação é muito preocupante. Entre as mudanças mais problemáticas estão:
A epidemia de covid-19 mostrou que, a despeito de um crescimento significativo do mercado de planos de saúde nas últimas décadas e dos recursos que manipula, quem conseguiu garantir atendimento integral à saúde da população brasileira foi o Sistema público de Saúde, situação esta ocorrida em todo o mundo.
Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi é médica, doutora em saúde pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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