À medida que a guerra da Ucrânia prossegue, a relevância do assunto vai diluindo. Mas este conflito é, sem dúvida, o de maior impacto geopolítico nas próximas décadas.
por Marcus Vinícius De Freitas em 10/06/22 08:23
À medida que a guerra da Ucrânia prossegue, com mais de cem dias já ultrapassados, a relevância do assunto vai, paulatinamente, diluindo. No entanto, não podemos esquecer que este conflito é, sem dúvida, o de maior impacto geopolítico nas próximas décadas.
Algumas questões derivam desta guerra e determinarão os rumos da governança global. Uma das dúvidas principais é relativa à capacidade da manutenção hegemônica dos Estados Unidos no sistema global e a sua capacidade de combater duas Guerras Frias – China e Rússia – ao mesmo tempo. A resposta parece negativa e os Estados Unidos provavelmente não conseguirão. Sob a perspectiva militar, a Rússia, mesmo após a tentativa de estrangulamento dos Estados Unidos por meio de sanções e isolamento completo do país, parece manter a sua capacidade de atuação militar. Apesar dos erros incorridos inicialmente na Guerra da Ucrânia, a Rússia tem mantido os seus objetivos no conflito, conseguiu reajustar-se e ainda retém poderio suficiente para contender com os Estados Unidos.
Do ponto de vista econômico, apesar da pandemia e das restrições temporárias ocorridas em várias cidades da China, o desenvolvimento contínuo e estável da economia chinesa se contrapõe a um cenário de inflação ascendente, reduzido poder político do atual ocupante da Casa Branca, e provável recessão nos Estados Unidos nos próximos anos. Tal deterioração econômica, por certo, não permitirá aos Estados Unidos prosseguirem num embate contínuo contra Rússia e China. As concessões que, eventualmente, os Estados Unidos terão de fazer nos próximos anos, não permitirão ao país lograr a dissociação entre China e Rússia, particularmente em suas ações de alcance global, o que dificultará aos Estados Unidos manter a sua posição dominante, militar e economicamente.
Além disso, existem dois possíveis resultados da Guerra (ou Operação Militar Especial, segundo Moscou) na Ucrânia. O primeiro cenário, sem dúvida, seria o de uma vitória da Rússia no conflito. Se isto viesse a ocorrer, estaríamos diante do fim da hegemonia norte-americana e o surgimento e consolidação de novos grupos políticos e econômicos regionais, o que elevaria a competição global pelo poder a níveis jamais observados. A Guerra da Ucrânia poderá significar para os Estados Unidos aquilo que a Crise de Suez significou para o Império Britânico: o declínio inevitável.
A competição entre as potências desafiadoras e os Estados Unidos poderia gerar alguns benefícios globais, mas Washington, DC, parece mais inclinada à ressurreição da Guerra Fria como estratégia de retenção de poder. Para a Europa, a vitória russa seria um desastre, porque na ausência de um comando central, o continente seria obrigado a permanecer atrelado a uma potência global, como os Estados Unidos, agora com menor relevância e poderio, e com interesses domésticos de maior preocupação do que a parceria transatlântica, que já enfrenta desafios há anos.
No cenário em que a Rússia perde a guerra, certamente a posição norte-americana seria altamente fortalecida e o mundo retornaria a um contexto unipolar, com os Estados Unidos e seus aliados moldando a ordem internacional, conforme seus interesses, por décadas. Por certo, a China ficará no polo passivo desta reorganização global e sofrerá com o incremento da agressividade norte-americana, maior pressão sobre o comércio internacional chinês, além do possível aumento em ações diretas e intervenções, em outras partes do globo, com o uso do poderio militar, direta ou indiretamente. No caso da atuação contra a China – e eventuais opositores a esta ordem internacional – os Estados Unidos deverão incitar, particularmente, Japão e União Europeia a adotarem políticas econômicas mais hostis, para conter qualquer avanço no ritmo de desenvolvimento ou eventual tentativa de desafio ao poderio hegemônico norte-americano. Além disso, deveremos assistir a mais guerras limitadas contra os “inimigos”, baseados no discurso da defesa dos direitos humanos, soberania e valores democráticos.
O fato é que a Guerra da Ucrânia é um conflito regional que se transformou numa questão global de enorme divisão e escala entre Ocidente e Oriente. Se o conflito prosseguir por muito tempo, com enorme impacto sobre a economia global, talvez ainda assistamos a um conflito militar direto entre Rússia e OTAN. Se a Rússia perder o conflito – e esta é a esperança e desejo do Ocidente – veremos o país sofre a sua pior derrota econômica e política. Para a China também significará um sinal vermelho quanto a qualquer movimentação política relativa a Taiwan. É importante, por fim, ressaltar que esta Guerra da Ucrânia também prejudica a China substancialmente, pois representa a importação de inflação, em razão do aumento no preço das commodities, flutuação nas taxas de câmbio e disfunções políticas, dentre outros.
A mídia russa tem comparado a guerra atual ao conflito franco-russo do início do século XIX e ao dos Aliados contra os fascistas na Segunda Guerra Mundial. Se a Rússia perder, o entendimento é que o país, como conhecemos, deixará de existir. Se vencer, no entanto, Putin eliminará o confronto representado pelo Ocidente e os últimos cinco séculos de hegemonia global ocidental. É o temor da derrota que faz com que Putin siga – com apoio popular – no conflito, porque o país não suportaria as consequências de uma derrota.
Talvez um cessar-fogo – e não uma rendição como foi o desastroso Tratado de Versalhes – fosse o cenário mais interessante neste momento, sob a percepção de que os dois lados garantiram algum tipo de benefício. “Salvar a cara” seria a melhor forma de alcançar algum resultado positivo deste conflito para os dois lados.
*Marcus Vinícius De Freitas é professor Visitante, China Foreign Affairs University, Senior Fellow, Policy Center for the New South
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