Polarização e ataques organizados e institucionalizados à liberdade de imprensa potencializam discurso misógino contra profissionais que cobrem política
por Jamile Santana em 28/11/21 18:16
Atenção: A reportagem abaixo, realizada pela Revista AzMina, mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência contra mulheres jornalistas se espalha, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la.
“Puta. Vai abrir a perna e dar pro Lula”. Essa foi a primeira mensagem que Eliane Cantanhêde, jornalista, colunista do Estadão e comentarista do Globonews Em Pauta, da Rádio Eldorado (SP) e da Rádio Jornal (PE), recebeu pela manhã do dia 18 de novembro. A ofensa chegou à sua caixa de mensagens privadas em um dos seus perfis profissionais nas redes sociais. Essa, infelizmente, não é a única frase ofensiva que ela recebe em suas redes. Algumas ficam públicas nos comentários de suas postagens, documentando a misoginia e violência contra mulheres jornalistas para quem quiser ver.
Eliane lidera um ranking de impunidade e ataques a profissionais de imprensa. As mulheres jornalistas recebem mais que o dobro de ofensas em seus perfis no Twitter, se comparado aos colegas homens. Esse foi um dos achados preocupantes de uma investigação de dados feita pela Revista AzMina e pelo InternetLab, junto ao Volt Data Lab e ao INCT.DD, com apoio do International Center for Journalists (ICFJ). A crescente onda de ataques à imprensa brasileira aparece também em relatórios da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Seja no ambiente offline ou online, a violência tem o gênero feminino como principal alvo.
No levantamento realizado no Twitter, constatou-se que os usuários que disparam ataques contra jornalistas tentam deslegitimar a capacidade intelectual feminina para o exercício da profissão e silenciar a imprensa, apontam aspectos físicos das profissionais para desviar a atenção das pautas abordadas e disseminam informações falsas sobre elas.
Foram monitorados 200 perfis de jornalistas brasileiros na rede social. A partir de um dicionário composto de palavras ofensivas, misóginas, sexistas, racistas, lesbo, trans e homofóbicas, coletamos 7,1 milhões de tuítes com conteúdo ofensivo em 133 perfis de mulheres jornalistas e 67 homens. Em uma análise mais minuciosa, que considerou o período entre 1 de maio e 27 de setembro, o monitoramento chegou a um grupo de pouco mais de 8,3 mil tuítes, com cinco ou mais ações de engajamento (RT e/ou curtidas). Eles foram verificados um a um para identificar se o conteúdo era ou não um ataque direto ao jornalista.
Profissionais que trabalham com cobertura política estão mais expostos aos ataques massivos. Mas, enquanto 8% dos tuítes ofensivos direcionados para os jornalistas homens eram de fato hostis, 17% dos direcionados às jornalistas mulheres eram ataques. Entre os termos mais usados contra elas estão “ridícula”, “canalha”, “louca”, “mulherzinha”. A maioria das agressões também sugerem que as mulheres são incapazes de interpretar um texto ou cenário político.
No caso dos homens, a incidência de ataques diretos é menor e, muitas vezes, as ofensas se misturam com ataques a outras mulheres ou à imprensa no geral. Várias mensagens direcionadas aos homens também continham comentários misóginos ofendendo outras figuras femininas relacionadas a eles, como mãe, irmã e colegas de profissão.
De acordo com a antropóloga Fernanda K. Martins, uma das coordenadoras da pesquisa no InternetLab, “a misoginia se sustenta e se espraia socialmente a partir de movimentos que colocam as mulheres como alvo mesmo quando o objetivo é atingir um homem. Os ataques direcionados às colegas e às familiares mulheres apontam para um comportamento social que coloca o gênero feminino como naturalmente atacável, naturalmente suscetível a discursos que inferiorizam e menosprezam as mulheres”.
O que se vê em comum em ambos são expressões que tentam posicionar os profissionais em espectros políticos, chamando-os de “comunista” ou de “jornazistas”, além dos que afirmam que os jornalistas são, de alguma maneira, “parciais” em suas coberturas.
No topo do ranking das jornalistas mais ofendidas estão Eliane Cantanhêde; Vera Magalhães, apresentadora do programa Roda Viva, colunista no jornal O Globo e comentarista na rádio CBN; Daniela Lima, apresentadora da CNN; e Miriam Leitão, jornalista de O Globo, TV Globo, Globonews e CBN. Elas compartilham a opinião de que os ataques são ainda mais virulentos quando iniciados ou instigados por figuras políticas, como o presidente Jair Bolsonaro. AzMina já mostrou em seu canal no YouTube porque as agressões de Bolsonaro a jornalistas mulheres são um problema.
Eliane lembra que os ataques nominais a jornalistas começaram na época do PT na presidência, por apoiadores do partido. Ela também recorda que já foi muito atacada pelo PSDB. Um mesmo artigo desagradava os dois lados. “Mas o Bolsonaro não só usou essa tática, como passou a descredibilizar nominalmente jornalistas, o que inflama os apoiadores”, avaliou.
Para Vera, os ataques são estratégicos. “Eu entendo que eles são propositalmente misóginos, machistas, exatamente como uma forma de tirar a credibilidade de mulheres jornalistas”. Ela acredita que seu caso é agravado pelo fato de ter feito muitas críticas ao PT, “e faço contra o governo Bolsonaro”. Mas hoje a coordenação das ofensas, diz Vera, parte do presidente, de sua família e seus ministros. “Isso não havia nos governos anteriores. É violento e orquestrado”.
A jornalista Mariliz Pereira Jorge, colunista da Folha de S.Paulo, roteirista e apresentadora do Canal MyNews, conta que enfrentar a hostilidade para exercer a profissão infelizmente já faz parte da sua rotina. O problema, na opinião dela, é que agora os ataques estão mais organizados e massivos. “Quando um tuíte parte da própria presidência, ou dos parlamentares da base governista, já sei que vai ter uma enxurrada de ofensas”. E, muitas vezes, além de ofensivas, as mensagens são intimidatórias.
Além dos xingamentos, as jornalistas precisam combater a disseminação de notícias falsas sobre suas trajetórias, o que é também uma estratégia política de descredibilização dessas profissionais. Miriam Leitão, por exemplo, é constantemente ofendida com termos como “assaltante de banco” e “mulher da cobra”, expressão criada por seguidores do presidente Jair Bolsonaro, que minimizou e zombou do episódio de tortura sofrido pela jornalista na época da ditadura militar.
“Já entrei no Trending Topics do Twitter porque usaram uma foto minha dizendo que era da minha prisão por ter assaltado um banco”, comentou Miriam, acrescentando que nunca pegou em uma arma e essa informação já foi desmentida dezenas de vezes. “Mas vira e mexe, surge uma nova onda usando isso volta”. Ela nota que perfis falsos criam ondas artificiais de ataque que poluem o debate, distorcem o diálogo.
Como é de praxe em narrativas misóginas, as mulheres também sofrem ofensas que são direcionadas aos seus corpos, seus relacionamentos e também suas idades. Com Eliane Cantanhêde e Vera Magalhães, por exemplo, colocaram em cheque a saúde intelectual delas. “Eles acham que me ofendem, mas nunca fiz questão de esconder minha idade. Tenho orgulho da minha história, da avó que sou”, disse Eliane.
A atuação profissional do marido de Vera Magalhães, que também é jornalista e já trabalhou na assessoria de diferentes políticos do cenário nacional, frequentemente é discutida nas redes sociais como algo que supostamente interfere na trajetória e opiniões delas. Estratégia semelhante acontece com a jornalista Eliane Catanhêde.
As conclusões do monitoramento são muito similares às do relatório desenvolvido pela Abraji, que mostrou um índice de 56% de ataques online para mulheres jornalistas em 2020. Também foram usados xingamentos, palavrões e termos misóginos quando as vítimas eram mulheres. “Esse cenário chama atenção para a necessidade de mecanismos de proteção legal e institucional da liberdade de expressão, especificamente atentos à questão de gênero”, defendeu Cristina Zahar, secretária executiva da associação.
Muitos usuários insinuam que mulheres negras e indígenas se aproveitam de suas características para acessarem os espaços profissionais que conquistaram. É o caso das jornalistas Maju Coutinho, mulher negra, e Alice Pataxó, mulher indígena. “vc não é monarquista? E essa eletricidade que cê tá usando aí, cabra? No tempo do império tinha essas coisas não”, postou um perfil depois que a jornalista postou uma foto onde um indígena tira foto com o celular.
Além da experiência violenta que é abrir as redes sociais todos os dias e se deparar com ataques como esses, as jornalistas também chamam a atenção para a dificuldade de denunciar isso dentro das próprias plataformas.
Mariliz Pereira Jorge conta que já reportou vários ataques, mas não obteve respaldo. As respostas que recebeu foi de que aquilo não feria as políticas da plataforma. “Uma mulher que postar foto do seio pode ser banida porque isso fere muito mais as políticas das plataformas do que uma ameaça de estupro, de morte, como já aconteceu comigo e outras colegas”. Ela avalia também que agressões geram engajamento.
Para Miriam Leitão, todo perfil deveria ter uma pessoa física e/ou empresa, identificável juridicamente. Ela sugere que as plataformas tenham a responsabilidade de apontar quem é real em ondas de ataques organizadas, neutralizar e excluir perfis que não são verdadeiros, porque os bots (robôs) não têm rosto. “Quando recebo uma ofensa sexista, mentirosa, quem posso processar se eu quiser?”, questiona.
O monitoramento identificou que muitos tuítes com conteúdo agressivo explícito, como “puta” e “vagabunda”, por exemplo, já foram retirados do ar.
Em nota, o Twitter informou que possui política de comportamento abusivo (que trata de tentativas de assediar, intimidar ou silenciar a voz de outra pessoa) e política contra propagação de ódio (que estabelece que não é permitido promover violência, atacar diretamente ou ameaçar outras pessoas com base em categorias ou características específicas). Se confirmada a violação, são tomadas diferentes medidas corretivas, que vão desde a remoção e/ou redução de visibilidade de um Tweet até a suspensão permanente de uma conta.
Sobre o grande volume de perfis falsos identificados como autores dos tuítes ofensivos, o Twitter informou que tem regras para endereçar tentativas de manipulação do debate na plataforma, seja via spam ou contas falsas. Essas regras determinam que não é permitido usar os serviços do Twitter com o intuito de amplificar ou suprimir informações artificialmente nem de se envolver em comportamento que manipule ou prejudique a experiência das pessoas na plataforma. A rede social tem usado aprendizado de máquina e treinamento da equipe para identificar esses perfis. Quando há suspeita, as contas detectadas passam então pelo chamado desafio (como confirmação de e-mail ou telefone ou digitação de um código Captcha, por exemplo) para provar que existe uma pessoa por trás dela. Se a conta não passa pelo desafio, ela sofre as medidas corretivas cabíveis.
Por fim, o Twitter informa que faz revisão periódica das regras e políticas, entre elas a política contra propagação de ódio para incluir mais categorias no que chama de linguagem desumanizante. A empresa afirmou ainda que conta com um Conselho de Confiança e Segurança composto por 40 organizações e especialistas em 13 regiões, inclusive brasileiros.
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