Cultura

Covid-19 e desigualdade de gênero

“Quem vai contratar uma mãe?”: como a pandemia prejudicou mais as mulheres

A pandemia não inaugurou a desigualdade no Brasil, mas tem aprofundado as diferenças de oportunidades

por Thales Schmidt em 08/03/21 00:40

Uma das primeiras vítimas do novo coronavírus no Brasil foi uma empregada doméstica de 63 anos, que contraiu a enfermidade de sua patroa vinda da Itália. O episódio de março de 2020 mostrou uma realidade da pandemia que segue se repetindo: o efeito desigual da covid-19.

Moradora de Miguel Pereira, município no sul do estado do Rio de Janeiro, ela trabalhava há 10 anos na casa de uma mesma família no Leblon, na zona sul carioca. Se Miguel Pereira fosse um país, teria um índice de desenvolvimento humano (IDH) que colocaria a cidade na 92° do ranking da Organização das Nações Unidas (ONU), entre Argélia e Líbano, dois países que atravessaram guerras civis no último século. Já o país Leblon seria a nação com maior IDH do mundo, destronando a Noruega.

O Brasil tem 6,2 milhões de trabalhadores domésticos, segundo dados de 2018 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesta classe, 93% da mão de obra é formada por mulheres e 68% por mulheres negras.

Com a perda 1,5 milhão de postos de trabalho e uma retração de 24,2% entre setembro a novembro de 2020, o setor do trabalho doméstico só ficou atrás das perdas do setor de alojamento e alimentação (-26,7%). Os dados são, novamente, da PNAD Contínua.

A professora de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Solange Gonçalves destaca que a pandemia não inaugurou a desigualdade brasileira, mas acentua tendências já existentes. “O que a pandemia fez foi agravar essa situação das mulheres. Tanto no mercado de trabalho como em termos dessas tarefas domésticas, desse trabalho não remunerado”, afirma.

“Para os trabalhadores manuais, o home office não é uma realidade possível. A gente tem, por exemplo, o emprego doméstico em que as trabalhadoras negras atuam fortemente, tem uma taxa grande de ocupação. E a gente sabe que essas mulheres, ou elas pararam de trabalhar ou tiveram por um período de conviver com chance da entrada na pobreza, ainda que o auxílio emergencial tenha sido super relevante para manter essas famílias fora da pobreza. E outras tiveram que, de fato, continuar a trabalhar, e isso aumenta a chance de contato com a doença e letalidade”,

A população negra tem uma chance maior de morrer de covid-19. Estudo do Instituto Pólis com base em dados da mortalidade da pandemia na cidade de São Paulo mostrou que a taxa de mortalidade para as mulheres é de 85 mil óbitos por 100 mil habitantes. Já para as mulheres negras, o indicador é de 140 mortes por 100 mil habitantes.

Coordenadora do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero, Gonçalves destaca em entrevista ao MyNews que até mesmo a “lenta recuperação” econômica que o país atravessa tem gerado mais vagas para homens do que para mulheres.

“Todo esse conjunto de desigualdades que já é maior para as mulheres negras no mercado de trabalho por conta de pobreza, segregação ocupacional e discriminação, esse conjunto de desigualdades passou a ficar ainda mais forte no contexto da recessão econômica relacionada à crise sanitária”, diz a professora da Unifesp.

“Quem vai contratar uma mãe?”

Na ficha da candidatura, uma pergunta: Você tem filhos? Tem com quem deixá-los em caso de adoecimento? A assistente social Renata Oliveira relata que já se viu diante desses questionamentos ao procurar uma colocação profissional.

“A mulher é naturalmente responsabilizada pelo cuidado com os filhos, mulher é cuidadora normalmente, é assim que ela é vista pela sociedade, então a partir do aumento desse trabalho doméstico eu tive a qualidade do meu trabalho externo, meu trabalho remunerado, completamente comprometida”, diz Oliveira em entrevista ao MyNews. “Estou tentando estudar para três concursos e não consigo. Os dias passam, eu sou afogada pelas atividades em casa e tarefas com a Luiza e eu simplesmente não consigo estudar”.

Dados do IBGE mostram que as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas por semana aos afazeres domésticos. Já entre os homens, a média semanal de horas dedicadas a estas tarefas é de 10,9 horas.

Mãe solo de uma criança de quatro anos, Oliveira conta que precisará matricular sua filha em uma escola particular se for chamada para uma possível vaga em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Para vencer os cerca de 30 quilômetros que separam sua casa do possível trabalho remunerado e chegar no horário necessário, não terá outra alternativa. “Sem trabalhar, como a gente paga aluguel? Comida?”.

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