Cultura

Caçada humana

Se Lázaro não existisse, seria preciso inventá-lo

Pesquisadora da UFS alerta que o “criminoso monstruoso” serve para desviar o olhar da “violência cotidiana”

por Thales Schmidt em 03/07/21 10:31

Após render horas de programas policialescos e cliques para notícias, Lázaro Barbosa foi morto pela polícia com 39 tiros. A busca durou quase três semanas e mobilizou mais de duas centenas de agentes públicos de segurança, helicópteros, drones e dezenas de viaturas. O episódio do “serial killer”, contudo, serviu como cortina de fumaça para os verdadeiros problemas da violência no Brasil e em Goiás, afirma ao MyNews a pesquisadora em criminologia Aline Passos.

“A gente está olhando para aquele grande caso extraordinário, monstruoso. Não se nega a existência porque o extraordinário acontece, não se trata de se negar a existência, mas se trata de pensar que nenhuma política pública, por exemplo, se constrói sobre o extraordinário. Quando se fala em política, a gente está pensando em atacar o que é a violência comum, majoritária, corriqueira”, diz a doutoranda em sociologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Passos destaca que, por exemplo, a maior parte dos estupros não são cometidos por criminosos extraordinários e midiáticos como Lázaro. Dados do do Anuário do Fórum de Segurança Pública apontam que 75,9% das vítimas de estupro têm algum tipo de vínculo com o agressor, entre parentes, companheiros, amigos e outros. Além disso, a mesma pesquisa afirma que 53,8% das vítimas de estupro no Brasil tinham até 13 anos de idade.

“Veja, até a denominação [serial killer] é importada para que a gente não olhe para um problema que é nosso. Existe latifúndio, grilagem, roubo de terras, assassinato por disputa de terras, essa violência que é constitutiva, que é ordinária e presente no Brasil não é discutida”, avalia a pesquisadora da UFS.

A operação de busca por Lázaro pode ter custado mais de R$ 3 milhões, de acordo com estimativa do ex-secretário nacional de Segurança Pública, coronel José Vicente Silva, em entrevista à TV Bandeirantes. Parte destes recursos foi destinada para as forças policiais de Goiás, o único estado do Brasil que não divulga dados sobre civis mortos por seus agentes estatais de segurança.

Policiais da força-tarefa destinada à captura de Lázaro Barbosa Sousa, na região de Cocalzinho de Goiás. Foto: Fabio Lima
Policiais da força-tarefa destinada à captura de Lázaro Barbosa Sousa, na região de Cocalzinho de Goiás. Foto: Fabio Lima

A morte de Lázaro foi comemorada nas redes sociais pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e imagens dos policiais envolvidos na busca e vibrando com o desfecho circularam pelas redes sociais. Passos destaca que na superfície existe a festa pela morte de um “grande monstro”, mas há também outras camadas no incidente.

“Na verdade, o que está sendo comemorado é que nenhum fazendeiro da região vai ser investigado por trabalho escravo, por grilagem, que nenhum sujeito da região vai contar a história da disputa de terras da região, menos ainda onde estão as populações indígenas da região”, afirma ao MyNews.

A pesquisadora também destaca que o caso foi utilizado para defender um aumento do rigor punitivo, apesar do Brasil ter a 3ª maior população carcerária do mundo. Entre os mais de 733 mil detentos no Brasil, 268.438 são presos provisórios, ou seja, não passaram por nenhum julgamento. Os dados são do Infopen.

O ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro chegou a afirmar que “urge mudar a lei para evitar novos Lázaros” e ressaltou que seu “projeto anticrime” previa regras mais duras para progressão de regime.

Passos destaca que Lázaro, por ser negro e pobre, foi mais facilmente transformado em “monstro” pelas policias e pela imprensa do que aconteceria com um eventual fugitivo branco.

“Essa transformação do Lázaro em grande monstro que autoriza as execuções como vimos no Jacarezinho, como vimos da Kathlen, que estava grávida, autoriza no sentido de que essa monstrualização não fica restrita ao caso Lázaro, todas as pessoas que compartilham com ele uma série de características se tornam alvos possíveis dessas políticas de execução”, afirma a pesquisadora da UFS.

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