Desigualdade na educação brasileira ficou ainda pior em razão da pandemia. Especialistas defendem cotas étnico-raciais
por Nádia Pontes em 11/12/20 14:30
De segunda a sexta, a partir das 12:30, Pedro*, 10, se fecha no quarto com seu laptop. É quando começa a aula online da escola internacional onde estuda, no Rio de Janeiro, com mensalidade de até R$ 7 mil.
Para melhorar o aprendizado à distância, a sala de Pedro foi dividida: 10 estudam pela manhã, 11 frequentam o período da tarde. Todas as atividades de ensino são na língua inglesa — o português só aparece quando esse é o tema da disciplina.
Na plataforma digital, ele participa das aulas, faz os exercícios, completa as tarefas deixadas por professores. “Não está sendo difícil estudar em casa, mas eu sinto falta dos meus amigos”, diz Pedro sobre o método.
A mãe dele acredita que o filho tenha se adaptado bem à rotina, que foi implantada pela escola dez dias depois do início da quarentena na cidade, em 24 de março, devido à pandemia do novo coronavírus.
Já em Belém, capital do Pará, Juliana*, 18, ficou de meados de março a setembro sem qualquer contato com a escola. “Com a quarentena, tudo parou. Ficamos sem aula, sem ajuda, sem saber de nada, completamente parados”, explica.
Ela está entre os 6,3 milhões de alunos do ensino médio da rede estadual pública do país — 575 mil deles estão no Pará. Estudante do terceiro ano do ensino médio que sonha em cursar Direito, ela quase abandonou tudo. “Fiquei muito triste, muito desanimada com os estudos. Mas meus pais e tios foram me incentivando a não desistir”, detalha.
Para a turma de Juliana, as aulas virtuais só começaram em setembro. Ela tenta acompanhar o conteúdo de um celular que pegou emprestado de um primo. Entre os colegas, há aqueles que continuam longe da programação por falta de acesso à internet, ou por precisarem trabalhar em tempo integral para ajudar a renda familiar.
Essas realidades tão distintas não surpreendem Dirce Zan, pesquisadora e atual diretora da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “A pandemia tornou visível e agravou a desigualdade, que está presente na educação brasileira desde a sua origem”, comenta.
A complexidade desse cenário se mostra nas diferentes manifestações da desigualdade: de classe social, gênero, acesso aos serviços públicos, à saúde e proteção social. E o reflexo dessa sociedade brasileira tão assimétrica é percebido diretamente na educação.
No Brasil, as diferenças internas aparecem no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Ele faz um monitoramento das escolas e das redes de ensino e funciona como um indicador: na escala de 0 a 10, quanto melhor o desempenho dos alunos e o número de alunos aprovados, maior será o Ideb.
Entre os estados, o Pará teve uma das menores notas em 2019 para os anos iniciais do ensino fundamental (4,9) e anos finais (4,1). O índice é ainda menor para o ensino médio: 3,4.
Maria*, que prefere não ter o nome verdadeiro revelado na reportagem por medo de retaliações, é professora de Sociologia na rede estadual paraense. Ela diz que as desigualdades são escancaradas na rotina diária de trabalho.
Desde o início da pandemia, as turmas de primeiro e segundo anos do ensino médio de uma das escolas onde Maria leciona estão praticamente abandonadas. Alguns alunos receberam um caderno com exercícios impressos apenas no fim de setembro. A iniciativa, porém, precisou ser interrompida por falta de papel e tinta para imprimir o material.
“No nosso estado, de dimensões continentais, há professores que precisam, muitas vezes, pegar barco até as escolas mais distantes, que trabalham sob a luz de lamparinas. Mesmo na capital, cada escola tem a sua particularidade”, explica a docente.
Antes mesmo da pandemia, problemas graves de infraestrutura no prédio de uma das escolas onde trabalha, construído na década de 1970, comprometiam a qualidade do ensino. Falhas na rede elétrica, interrupções no abastecimento de água, vazamentos em dias de chuva, entupimentos estão entre as dificuldades diárias. Computadores e laboratórios também faltam.
Esse quadro tem um impacto direto na qualidade do ensino, como mostrou uma pesquisa encomendada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) à UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e publicada no ano passado.
Uma das conclusões do estudo mostra que, quanto melhor a infraestrutura da escola, maior é o resultado no Ideb. Escolas federais e particulares têm médias mais altas do que as estaduais e municipais.
Na análise por regiões, nota-se um padrão de desigualdade espacial já conhecido no país: as regiões Sul e Sudeste têm as escolas com médias mais altas para todos os indicadores de infraestrutura em comparação às escolas do Norte e Nordeste.
Essas condições tão díspares fazem parte do que o pesquisador Fernando Abrucio, da Fundação Getulio Vargas (FGV), chama de “caleidoscópio de desigualdades”. “Há uma desigualdade territorial, na distribuição da qualidade das redes de ensino e entre os alunos. As crianças que moram em regiões mais pobres, mais periféricas, mais violentas, têm maior dificuldade de acesso à educação”, pontua.
O mesmo vale para a questão étnico-racial. “Não é apenas uma desigualdade de gênero. Temos estudos que mostram que a diferença não é só entre pobres e ricos, mas entre brancos e negros. Mulheres negras e pobres são, por diferentes motivos, forçadas a parar os estudos mais cedo”, acrescenta Abrucio.
É por isso que o pesquisador defende o sistema das cotas étnico-raciais vigente nas universidades públicas. “Veremos nas próximas décadas um estoque de jovens e adultos pobres e negros com ensino superior como nunca antes tivemos. Isso vai gerar uma mudança muito grande, já que a desigualdade de escolaridade pode ser vista como a mãe de todas as desigualdades”, complementa.
Quando comparado à Europa, o Brasil começou a organizar de forma ampla o sistema de educação com pelo menos cem anos de atraso. Foi apenas em 1988, com a redemocratização, que a educação entrou para a agenda pública.
A demora em priorizar o tema repercute ainda hoje. Na edição de 2018 do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), o maior estudo sobre educação do mundo, alunos brasileiros demonstraram baixa proficiência em leitura, matemática e ciências na comparação com 78 países que participaram da prova.
Os resultados do Brasil, estagnados desde 2009, são preocupantes: 68,1% dos alunos com 15 anos de idade não possuem nível básico de matemática. Em ciências, a taxa é de 55% e, em leitura, 50%.
“O Pisa e o Ideb são, sem dúvida, réguas importantes, mas não podem ser as únicas. Nosso ponto de partida é pior do que os demais, começamos mais tarde e é preciso levar em conta essas condições”, pondera Abrucio, da FGV.
No país onde, por muito tempo, a educação nunca foi pensada como forma de desenvolvimento e de igualdade, 56,2% da população era analfabeta na década de 1940. Cinquenta anos depois, esse numero ainda era de 20%.
“Além da escola, por si só, é preciso toda uma articulação de políticas para reduzir a desigualdade, que inclua saúde, proteção social, moradia, geração de renda”, avalia Dirce Zan, da Unicamp.
Para a pesquisadora, no entanto, o país caminha atualmente numa direção oposta. “Desde 2015 estamos vivendo o desmonte das políticas públicas que vinham dando resultado. O cenário se agravou por conta da pandemia. A evasão escolar é uma ameaça séria, o que só agravaria as desigualdades”, justifica.
Uma análise feita pela Câmara dos Deputados mostrou que, de 2014 a 2018, o investimento em educação feito a partir do orçamento total do Ministério caiu de R$ 11,4 bilhões para R$ 4,9 bilhões.
Especialistas na área são unânimes: o investimento precisa aumentar. “O fortalecimento da rede pública de ensino é a alternativa. E as comunidades, os pais, precisam ajudar a fortalecer a instituição, para garantir o direito à educação de qualidade e o combate ao desigualdade”, finaliza Zan.
*Os nomes de alguns dos entrevistados foram alterados a pedido dos próprios ou de seus familiares
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