Ofensas explícitas, diagnósticos imprecisos e procedimentos desnecessários fazem pacientes negras e indígenas evitarem consultas e tratamentos
por da Revista AzMina em 28/02/21 10:30
“Agora eu uso a desculpa da pandemia, mas na verdade o buraco é bem mais embaixo”. É desse modo que a estudante universitária Jé Hámãgãy, 22 anos, justifica o fato de estar evitando ir a médicos desde que o seu filho nasceu, há pouco mais de seis meses.
Uma “desculpa”, como ela mesma diz, já que foi durante a pandemia que ela fez todas as consultas e exames de pré-natal, em hospitais públicos de Belo Horizonte e de Lagoa Santa, na região metropolitana de BH. Mas foi justamente nessas ocasiões, que Jé vivenciou uma série de situações racistas, que reviveram novos e velhos traumas de toda uma vida em atendimentos médicos.
“São vários episódios, mas durante a gravidez foi pior. A médica disse que era muito cedo para eu estar grávida, não fez nenhum exame para comprovar se eu estava ou não gestante, e me fez pagar uma endoscopia urgente para o enjoo e desconforto no estômago. Não fui anestesiada e senti muita dor. Depois descobri que mulheres grávidas não podem fazer esse procedimento”, conta Jé. Ela é indígena e acredita que a postura da médica foi totalmente motivada pelo preconceito.
Histórias como a dela alertam para como o racismo, que perpassa todas as relações sociais no Brasil, assume formas específicas dentro de consultórios, clínicas e hospitais. Para discutir o assunto e saber como isso acontece, AzMina coletou mais de cem relatos de mulheres de todo o país sobre suas experiências em atendimentos médicos.
83% das respostas foram de mulheres não-brancas: 60,6% pretas, 19,2% pardas e 3% indígenas. Destas, quase 68% afirmou já ter sofrido racismo durante atendimento médico e pouco mais de 16% disse que “talvez” tenha sofrido. As especialidades com maiores ocorrências, relatadas no formulário foram ginecologia (43 casos), clínica (40), dermatologia (19) e obstetrícia (10).
Os dados que coletamos não têm validade estatística, mas os relatos que recolhemos dão uma noção da complexidade do tema. A naturalização e a multiplicidade das situações geram dificuldade em conceituar a violência, muitas vezes percebida pela paciente algum tempo depois ao ouvir outras histórias e, sobretudo, ao comparar sua experiência com a de mulheres brancas. Nas respostas que coletamos, 26% das mulheres afirmam ter percebido que foram vítimas de racismo na assistência à saúde logo depois ou algum tempo depois do atendimento.
Explícitas ou veladas, as barreiras começam antes mesmo da conversa com o médico. Foi o caso da culinarista Marinalda Soares, 50 anos, cujas piores experiências aconteceram ainda na recepção da Unidade de Saúde da Família do bairro onde mora, em Feira de Santana, na Bahia. “Há anos venho reclamando do tratamento desproporcional que a atendente dá aos pacientes, ela privilegia alguns e sempre são as pessoas de pele clara”, denuncia Marinalda.
Certa vez, nesse mesmo posto, ela ouviu do médico que ele precisava de uma pretinha como ela para cuidar dele e fazer comida. “Eu rebati imediatamente, perguntando: ‘É o quê, doutor?’, mas ele desconversou”, lembra a culinarista, escancarando o assédio e também o racismo da situação.
No caso de Jé, citada no início da reportagem, ela ouviu de funcionários, ainda no corredor do hospital, que “índia não fecha as pernas e, por isso, engravida cedo”; na hora do preenchimento da sua ficha cadastral, marcaram sua cor como “parda”. “Puseram lá que eu era parda e ponto. Não fui questionada em nenhum momento sobre como me declaro. Essa foi a primeira vez que de fato eu bati pé. Fiz questão que alterassem, colocando ‘indígena’ tanto na minha ficha, quanto na do meu filho”, recorda.
A recorrência de comportamentos como esses foi o que motivou a assistente social Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, uma das 150 organizações que integram a Coalizão Negra por Direitos, a pressionar o Ministério da Saúde para incluir os indicadores de raça/cor nos boletins sobre a pandemia.
“Há uma tendência em dizer que a população não gosta de ser inquirida sobre raça/cor, que se sente ofendida, que esse dado não serve para muita coisa. Se não for obrigatório ser preenchido, as pessoas pulam ou definem elas mesmas a raça/cor das outras”, alerta Lúcia.
“A gente precisa ser reconhecida até para a formulação de políticas públicas. Se não constamos nos registros, não existimos. Sou indígena, meu filho também, e eu não vou aceitar ser parda” – Jé Hámãgãy, estudante universitária
Diagnósticos imprecisos, tratamentos equivocados e gastos com medicamentos desnecessários são algumas das consequências mais imediatas de um atendimento racista. Nas respostas que coletamos via formulário, são recorrentes histórias envolvendo as três questões.
Em um caso de uma leitora que não quis se identificar, a médica receitou um remédio para piolho, quando na verdade o problema da paciente era uma dermatite. “Ela disse que eu estava com piolho, mas que não dava para ver porque meu cabelo é cacheado. Disse que era para eu usar o remédio por duas horas, mas eu li na bula que não podia passar de 10 minutos. Foi aí que eu vi que tinha algo muito errado. Fui em outra médica e ela identificou a dermatite. Ou seja: a outra médica “confundiu” caspa com lêndea e ainda disse pra eu deixar um inseticida na cabeça por duas horas! Ainda bem que não deixei”.
O receio de passar por novas violências também faz com que elas deixem de procurar assistência médica, “Estava grávida de gêmeas idênticas mas a obstetra não sabia, pois não solicitou ultrassonografia. Tive parto prematuro e perdi uma menina. Gestante de alto risco com pré-natal de baixa qualidade por ser negra, tive sorte de não morrer, pois sou hipertensa. Na época, 1982, eu desconhecia a existência do racismo estrutural e institucional. Perdi mais 3 filhos e fui histerectomizada sem necessidade”, diz uma mulher negra, vítima de racismo obstétrico, que também não quis ser identificada.
É comum que as mulheres que sofrem racismo sintam vergonha e não queiram se identificar ou denunciar formalmente tais situações, inclusive por medo de não conseguir provar. “Quando essas denúncias chegam ao sistema de saúde, aos órgãos competentes, elas são mal compreendidas. As mais graves se tornam problema dos profissionais envolvidos, e as mais leves são entendidas enquanto um problema da vítima. Por muito tempo, inclusive, havia uma plaquinha de desacato à autoridade em hospitais e postos de saúde, como se a pessoa que exigisse seus direitos, estivesse desacatando os profissionais. Tudo isso tem a ver com a dinâmica entre as instituições, o público e as relações de poder”, explica Lúcia Xavier.
“Na hora você se sente impotente, o médico está naquela posição de que sabe tudo sobre o corpo humano. Então se ele está subestimando a minha dor, logo penso que não deve ser mesmo coisa séria. Isso é muito perigoso e muito angustiante também. Como mulher preta, noto na minha história e na de mulheres da minha família uma dificuldade em se cuidar, em prevenir. Já é difícil, e se quando me dou ao luxo de cuidar de um problema que não é agudo, o médico subestima minha queixa, aí fica mais difícil ainda”, diz a advogada Letícia Pereira.
Tudo isso, faz com que a mulher sofra de modo mais intenso com as consequências psicológicas do racismo e a consulta de rotina vira sinônimo de medo e ansiedade.
“A violência obstétrica que sofri foi um gatilho para muitos transtornos de ansiedade que tenho até hoje. Foi um sofrimento mental muito grande ficar a mercê de médicos que se recusaram a fazer meu parto cesárea alegando que eu tinha quadris largos e que mulheres negras nasceram para ter parto normal (sim, eu ouvi isso!). Eu já estava na 41ª semana de gestação, e um mês antes tinha ficado internada com pré-eclâmpsia por 15 dias. Uma sensação de impotência e um medo enorme de sofrer isso de novo”, recorda outra mulher.
“As situações que vivi sempre foram veladas, nada muito direto. Mas depois de um tempo vem a sensação de que houve uma falta de cuidado, falta de zelo, que não aconteceria com uma paciente branca”, conta a advogada Letícia Pereira, 23 anos, ao citar como exemplos a média de duração do atendimento, a ausência de toque e a qualidade da inspeção visual durante um exame dermatológico.
A jornalista Layane Coelho também sentiu na pele o peso do preconceito durante uma consulta com uma dermatologista. “Eu estava com micose na unha porque tenho alergia a sabão, aí durante o atendimento a médica disse ‘você tem que pedir sua patroa para comprar luva’. Na época, eu era estudante de jornalismo e em nenhum momento falei que trabalhava como faxineira ou empregada doméstica”.
“Falei pra ela que a única louça que lavo é a minha, mas ela insistiu e repetiu ‘você tem que pedir sua patroa para comprar uma luva’.
Nos atendimentos, são recorrentes agressões verbais, “elogios” ofensivos, assédio sexual, violência obstétrica, recusa de anestesia, falta de escuta à queixa, diagnóstico equivocado e/ou tardio, além de falas eugenistas, que pressupõem a existência de que raça determina questões de saúde – a exemplo de “você é mais resistente a dor”, “negro tem sangue ruim” e “esse é um mal da raça”.
“O racismo na saúde pode incluir tanto a falta de acesso ou a má qualidade dos serviços, estendendo-se às próprias relações de poder entre os usuários e os profissionais dentro das instituições, até o dano físico ou psicológico decorrente do atendimento”, explica a médica e mestre em Saúde da Família Denize Ornelas.
“A identificação destas situações não é uma tarefa simples, e profissionais e pacientes só serão capazes de percebê-las se estiverem atentos para a existência e importância das relações étnico-raciais”, complementa.
Há seis anos, o coletivo NegreX reúne médicas e médicos negros e estudantes de medicina para combater o racismo na saúde, tanto no ambiente acadêmico como na assistência direta à população. O grupo busca ampliar o tema por meio de intervenções no currículo médico e organização de eventos.
“A premissa que rege a fundação do nosso coletivo é a de que o racismo é um problema estrutural que também perpassa nossas formações. Na medicina, isso acontece de forma violenta porque a gente está em contato direto com o outro, com o paciente”, explica a estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do coletivo NegreX Sabrina Costa, 20 anos.
Na palestra formativa “Sua Consulta Tem Cor?”, o coletivo apresenta três casos clínicos diferentes e provoca uma discussão sobre a atuação médica em cada um deles. A palestra é feita tanto com alunos do primeiro semestre, quanto do internato, na fase final do curso, de modo a estimular uma atuação profissional atenta à questão racial.
“Quando começamos a fazer a palestra, em 2016, as discussões rendiam pouco. Por mais que a gente motivasse o debate, aqueles eram temas que nunca tinham sido discutidos na universidade daquele modo. Hoje, com o sucesso da política de cotas e uma diversidade no corpo discente dos cursos de medicina, esses debates rendem muito mais, com os próprios alunos contando suas experiências enquanto pacientes, coisa que quase não existia há quatro anos”, compara Sabrina.
“Há uma melhora na discussão, um entendimento maior, principalmente nas turmas que estão chegando agora. Quem já está se formando, ainda está um pouco atrás. Então, há uma preocupação com os médicos que vão estar no mercado agora. Daqui a seis anos a gente acredita que vai estar melhor” – Sabrina Costa, estudante de medicina da UFBA e integrante do coletivo NegreX
No currículo formal, o avanço ainda é tímido. O próprio conceito de raça como um determinante socialmente construído é contestado por alguns professores, já que biologicamente “não existe raça”.
“Eu me autodeclarei preta e o médico contestou dizendo que eu deveria entender que eu era igual a todo mundo. Só que depois, no exame ginecológico, ele perguntou meio que já afirmando se eu já tinha tido filhos, mesmo eu tendo dito antes que não”, recorda uma mulher que respondeu ao questionário d’AzMina, mas não quis se identificar.
Para a médica Denize Ornelas, situações como essa podem ser evitadas com o letramento racial dos profissionais que ainda hoje acreditam que não falar em raça é uma forma de tratar todo mundo. “Respeitar a autodeclaração e dar a devida importância ao fator raça no atendimento é se permitir perceber que a queixa e o quadro clínico do paciente podem estar associados ao racismo”, defende.
A assistente social Lúcia Xavier é mais enfática ao descrever o problema e exigir soluções. “Todo mundo acha que esse é um problema de formação dos agentes de saúde, que não estão adequados para esse atendimento. Mas isso não é verdade. Ninguém entra no sistema de saúde sem experiência e formação. A humanização é um princípio do SUS. Não acredito que o foco para combater as situações racistas do atendimento seja a formação que, claro, deve ser incentivada de forma contínua. Isso é fruto de uma questão ideológica, da crença de que alguns merecem um atendimento de menos qualidade que outros, e isso demanda que as pessoas denunciem e que os profissionais e instituições sejam responsabilizados jurídica e formalmente”, comenta.
Em 2020, o Brasil atingiu o marco histórico de meio milhão de médicos. As características demográficas da classe, no entanto, ainda seguem o padrão hegemônico: branco e rico.
“Essa realidade mostra o quanto é importante o profissional de saúde entender que para uma pessoa negra ou indígena, ou mesmo para uma pessoa mais pobre, essa relação pode ser intimidadora. O paciente já chega acanhado, receoso. É preciso deixar essa pessoa à vontade para tematizar as questões que têm a ver com a vivência e a experiência dela”, ressalta Ornelas.
De acordo com o estudo Demografia Médica, da Universidade de São Paulo (USP), lançado em dezembro, dentre os concluintes de Medicina em 2019, 67,1% se autodeclararam da cor ou raça branca; 24,3% se declararam pardos, enquanto apenas 3,4% se autodeclararam da cor ou raça preta. Os demais se declararam de cor ou raça amarela (2,5%) e indígena (0,3%), além de 2,4% que não quiseram declarar. Entre os períodos estudados (2013, 2016 e 2019), houve um aumento pequeno e gradual do percentual de alunos autodeclarados pretos e pardos.
Embora não haja nenhum dado consolidado indicando quantos profissionais de saúde pretos e indígenas realmente atuam no mercado de trabalho, considerando os que conseguem finalizar o curso, são poucos. Foi o que o dentista Arthur Lima percebeu quando se formou na faculdade de odontologia, em 2015. “Uma colega me perguntou se conhecia um outro dentista negro. Procurei, procurei e não achei. A partir disso, quis criar algo que pudesse facilitar esse acesso”, diz ele.
Sócio-fundador da AfroSaúde, uma plataforma que conecta público a profissionais de saúde negros, Arthur foi eleito no ano passado uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo por conta da ideia. Para ele, o grande objetivo é que a população negra se sinta mais confortável nas consultas e no atendimento.
O projeto que, inicialmente, só abarcava a cidade de Salvador logo tomou proporção nacional. Hoje o aplicativo conta com mais de 500 profissionais inscritos, das mais diversas especialidades – as duas em que há maior dificuldade de encontrar profissionais negros são a dermatologia e a ginecologia.
Em nota, o Conselho Federal de Medicina ratifica que é vedado ao médico qualquer tipo de expressão de preconceito contra o paciente ou familiar e ressalta que o Código de Ética Médica cita em vários trechos a necessidade de se respeitar os pacientes segundo suas características.
Ainda segundo o CFM, não há, na instância, casos de médicos sendo denunciados por racismo. “No entanto, lembramos que o Conselho Federal de Medicina é uma instância recursal, ou seja, nele tramitam apenas processos que já foram julgados nos conselhos regionais e em que, após a sentença inicial, uma das partes sentiu necessidade de pedir uma revisão do que foi decidido”, diz a nota. Atualmente, o conselho não conduz estudos ou levantamentos sobre este tipo de situação.
Não é vitimismo, nem “mimimi”
As populações negra e indígena vivenciam realidades que exigem um atendimento de saúde específico.
Não comente aparência física
Nem para criticar, nem para elogiar. Comentários, frases e palavras revestidas de aparente normalidade carregam e fortalecem o preconceito e o racismo dissimulado.
Respeite a dor da sua paciente
Há uma crença de que pessoas negras são mais resistentes à dor. Isso é racismo! Não negue anestesia, analgésicos ou quaisquer medicações que possam aliviar os sintomas da sua paciente.
Abra mão dos estereótipos
Mulheres negras são hiperssexualizadas e isso faz com se intua que são heterossexuais, com vida sexual ativa e com mais chances de ter ISTs e gravidez indesejada. Deixe de lado o preconceito e ouça o que a sua paciente tem a dizer.
Não existe “mal da raça”
Hipertensão, diabetes, anemia falciforme são frequentes na população negra, mas se você associa a ocorrência delas a um “mal da raça” ou a “sangue ruim”, você está sendo racista! Esses falsos diagnósticos já foram usados por médicos eugenistas para defender uma superioridade racial e legitimar a segregação.
Facilite o acesso aos medicamentos
Ao receitar um medicamento, informe sempre o princípio ativo, de modo que a paciente possa buscar o laboratório que mais corresponda à sua realidade financeira. Nunca pressuponha que ela pode ou não pagar pelo tratamento.
Prescreva exames
Não é porque as populações negra e indígena têm, estruturalmente, menos acesso a exames, que o médico não deve prescrevê-los.
Fale sobre raça
Pergunte sobre como a sua paciente se autodeclara e se aproprie do vocabulário para tratar de raça durante sua consulta. Assim você estará realmente atenta às questões proporcionadas ou agravadas pelo racismo.
Invista em sua formação
Os cursos superiores ainda estão bastante atrasados nessa discussão. Atuar na assistência à saúde de negros e indígenas exige formação e capacitação contínuas.
Lembre-se: isso é só o básico
Respeito, humanização, acolhimento são somente o básico para um atendimento comprometido com as pessoas e com o fim do racismo.
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