Quem ganha com a política proibicionista são o traficante, as autoridades corruptas e os fabricantes de armas
por João Paulo Martinelli em 05/08/21 17:24
Depois de um período considerável sem notícias de tiroteios envolvendo traficantes e policiais, talvez por causa da pandemia, o Rio de Janeiro, na última semana, assistiu a lamentáveis confrontos que resultaram em mortos e feridos, em diferentes locais. Apesar da maior intensidade na capital fluminense, a violência gerada pelo tráfico de drogas é um problema constante de todo o país, em especial nas grandes cidades e locais fronteiriços. Além da quantidade de mortos, de todos os envolvidos (policiais, criminosos e moradores), cada vez fica mais evidente que esse tipo de enfrentamento não leva a lugar algum. Ao contrário, só fomenta a violência.
A guerra às drogas é uma política de prevenção do crime potencializada nos anos 80 pelo presidente norteamericano Ronald Reagan, num momento em que os EUA testemunhavam o aumento da criminalidade associada ao tráfico. Desde então, a influência do país mais poderoso do mundo atingiu outras nações, incluindo o Brasil, que passaram a investir na repressão ao comércio de entorpecentes. A solução foi apresentada de maneira muito simplista, como se a criminalização do uso e do tráfico fosse capaz de inibir o comércio e o consumo de substâncias ilícitas.
De acordo com a legislação, drogas são “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência”, conforme definidas em lista produzida e atualizada pela ANVISA. Ademais, também é a autoridade sanitária que define se a substância é lícita ou ilícita, pois algumas drogas são legalizadas e podem ser consumidas, desde que as regras estipuladas sejam seguidas. Em poucas palavras, um pequeno grupo de pessoas tem o poder de decidir o que pode e o que não pode ser consumido e comercializado sem consequências criminais.
Como acontece com tudo que é tabu, no Brasil não há espaço para discutir a regulamentação do uso de drogas consideradas ilícitas. Ainda há a crença de que a proibição é suficiente para inibir o tráfico e o uso de substâncias que fazem mal à saúde. Na verdade, há um aspecto moralista muito forte nesse debate, pois algumas drogas são legalizadas e os usuários não são punidos, nem quem as comercializa. Os principais exemplos são o álcool e o tabaco, isto é, quem bebe sua cerveja ou fuma seu cigarro é, sim, usuário de drogas. Entretanto, não se cogita criminalizar tais produtos.
As drogas podem trazer prejuízos à higidez de seus usuários, no entanto, ao invés de serem reconhecidas como problema de saúde pública, o tratamento é relegado à polícia. Persiste a ilusão da guerra às drogas como solução e qualquer tentativa de discutir a regulamentação dos entorpecentes é frustrada logo no início. O resultado é violência, corrupção e hipocrisia. Quem ganha com a política proibicionista são o traficante, as autoridades corruptas e os fabricantes de armas. De acordo com pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Cândido Mendes, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro gastaram R$ 5,2 bilhões na guerra às drogas e, como sabemos, nada foi resolvido. Imaginemos quantas famílias poderiam ser beneficiadas se esse valor fosse revertido em assistência social.
Em seu livro Na Fissura, Johann Hari expõe muito bem como alguns países diminuíram a violência decorrente do tráfico: com a regulamentação do uso. Estratégias devem ser traçadas para que a questão das drogas seja enfrentada como um problema de saúde pública, tratando o dependente como alguém que precisa de ajuda e o usuário eventual como um indivíduo que faz mal a si mesmo. Em resumo, quem usa não pode ser rotulado como delinquente. A regulamentação inibe o tráfico e propicia o controle maior do Estado sobre o comércio de entorpecentes. O início de um debate sério deve levar em consideração que, de acordo com o Infopen, um em cada três presos no Brasil são acusados por tráfico de drogas. E, como sabemos, a seletividade alcança apenas a ponta do esquema, isto é, os traficantes mais vulneráveis, que são descartáveis até para a organização para a qual atuam.
Pode parecer impactante tocar no assunto legalização das drogas ilícitas, mas é necessário. Substâncias entorpecentes sempre foram consumidas do longo da história, desde os tempos mais remotos até a atualidade. Deve-se buscar respostas para as causas que levam alguém a recorrer a elas. A guerra às drogas custa muito dinheiro, um valor absurdamente alto, que poderia ser revertido em outros investimentos. No entanto, o maior custo são vidas humanas. Pessoas morrem pelo uso excessivo de drogas, certamente, e por isso o tema deve migrar da polícia e da justiça para a saúde pública.
João Paulo Martinelli é advogado, mestre e doutor em direito penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, e professor do IBMEC-SP.
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