A Primeira Nação Tk’emlúps te Secwépemc encontrou os restos mortais de crianças de até 3 anos de idade no local do que costumava ser a maior escola residencial do Canadá
por Lívia Vitenti em 05/08/21 17:37
Essa frase chocante, que diz literalmente que devemos matar o “índio” na criança, fez parte do projeto assimilacionista implementando pela coroa britânica e por algumas instituições religiosas – majoritariamente católicas – no Canadá.
Recentemente, essa página sombria da história canadense veio à tona quando a Primeira Nação Tk’emlúps te Secwépemc encontrou os restos mortais de crianças de até 3 anos de idade no local do que costumava ser a maior escola residencial do Canadá. Mas o que sabemos sobre as escolas residenciais, e mais especificamente sobre a Escola Residencial Indígena Kamloops?
Construída no território da Primeira Nação Secwépemc Tk’emlúps te Secwépemc na Columbia Britânica, a Escola Residencial Indígena Kamloops pode ser considerada como a maior das instituições do Canadá destinadas a separar a juventude indígena de seus pais e culturas. Operando entre 1890 e 1969, a escola foi originalmente administrada pela ordem católica dos Oblatos de Maria Imaculada. A partir de 1969, a instituição passa a ser uma escola diurna dirigida pelo governo federal, operando por mais 9 anos e tendo suas portas fechadas oficialmente em 1978.
Anteriormente, o registro da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação podia confirmar apenas 51 mortes em Kamloops de 1914 a 1963. Mas a comunidade Tk’emlups há muito suspeitava que mais crianças estavam enterradas no local e tentou por cerca de 20 anos encontrá-las. Recentemente, um subsídio governamental permitiu que a nação pagasse pelo radar de penetração no solo, que foi usado durante o fim de semana do Victoria Day (ou celebração da rainha, dia 24 de maio) para encontrar o local. As conclusões preliminares da equipe de pesquisa foram tornadas públicas em 27 de maio e um relatório mais completo é esperado em junho.
Alguns dos restos mortais pertenciam a crianças de até 3 anos de idade. Acredita-se que elas tenham morrido antes sem documentos, diz a Kukpi7/Chief Rosanne Casimir. Mas pode levar algum tempo até que os restos mortais possam ser escavados, identificados e devolvidos às suas comunidades de origem para um enterro adequado; os protocolos forenses para valas comuns podem ser complexos e rigorosos. Pode exigir a ajuda do Serviço de Coroners ou do Museu Real de B.C., dependendo de como os Tk’emlups e outras nações decidem proceder.
Em 1874, o Governo do Canadá, em conjunto com várias organizações religiosas passou a implementar e administrar um sistema de ensino baseado em instituições denominadas escolas residenciais. Tais escolas foram estabelecidas em todas as províncias e territórios do Canadá, exceto Terra Nova e Labrador, Novo Brunswick e Ilha do Príncipe Eduardo.
No total, foram estabelecidas 132 escolas residenciais, a maioria das quais foram fechadas até meados da década de 1970. A última dessas instituições fechou em 1996.
Segundo dados oficiais, cerca de 150.000 estudantes foram colocados à força nos pensionatos. O sistema foi estabelecido por uma legislação aprovada pelo governo federal, mas a Igreja Católica assumiu a administração do sistema. As escolas residenciais ensinavam história, geografia, francês ou inglês – a depender da província – matemática e religião. Os estudantes eram divididos em seis grupos e três faixas etárias: 7 a 9, 10 a 11, e 12 a 16. As crianças de um mesmo grupo não podiam ter nenhum contato com os dos outros grupos. A disciplina imposta pelos professores era muito rígida e o “mau comportamento” era muitas vezes severamente punido.
Vale ressaltar que todas as crianças indígenas eram forçadas a frequentar uma escola residencial. Este sistema de “educação” fazia parte do processo de assimilação forçada. Nas escolas residenciais, as crianças eram proibidas de falar sua língua, de praticar sua espiritualidade, de aprender seus valores e de dar continuidade a seus sistemas culturais.
De acordo com os sobreviventes dos pensionatos, os padres e freiras lhes diziam que suas culturas eram “más”, e por isso os submetiam à exorcismos. Entre as muitas denúncias, se pode mencionar espancamentos e estupros, clausura em armários escuros, castigos corporais e restrição de alimentos. Tal política sistemática de assimilação era fortemente baseada em suposições racistas de que os sistemas culturais das Primeiras Nações eram inferiores, de tal maneira que as crianças eram punidas por falarem suas próprias línguas.
Os sobreviventes pressionaram o governo e as igrejas para indenizações e desculpas, um processo que levou a um acordo de 2 bilhões de dólares e à criação da Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth and Reconciliation Commission of Canada – TRC). Seu relatório final em 2015, baseado em entrevistas com mais de 6.000 testemunhas, disse que as escolas foram responsáveis pelo genocídio cultural e são inseparáveis dos problemas atuais que os povos indígenas enfrentam, desde altos índices de pobreza, suicídio e encarceramento até a perda de terras e tradições indígenas.
O Projeto Crianças Desaparecidas do TRC documentou até agora mais de 4.100 mortes nas escolas, mas a contagem total pode chegar a 6.000.
O relatório de 2015 observou enormes lacunas nos registros disponíveis de nomes de alunos falecidos, gêneros ou mesmo causas de morte. Seis das “chamadas à ação” do TRC têm a ver com crianças desaparecidas e enterros, e exigem um plano claro para dizer às famílias onde seus entes queridos perdidos estão enterrados e garantir que os cemitérios sejam bem mantidos.
Lívia Vitenti é antropóloga, PhD em Antropologia pela Universidade de Montreal, no Canada. Especialista em prevenção do suicídio em contextos indígenas e atualmente trabalho como coordenadora de projeto na organização Quebec Native Women.
* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews
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