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O seu peso não é culpa sua

Culpabilizar o obeso pelo seu excesso de peso é uma forma de tirar o foco dos lucrativos estímulos à obesidade presentes na sociedade em que vivemos

por Adriana Aguiar Aparício Fogel em 05/08/21 17:09

Pandemia é uma palavra que se tornou habitual nos últimos meses, em razão da COVID-19. Este texto apresenta mais uma palavrinha da mesma família: SINDEMIA. Basicamente, um coletivo de pandemias que acontecem simultaneamente. É o caso da desnutrição, da obesidade e das alterações climáticas.

Estas três pandemias formam a “sindemia global”. De acordo com relatório lançado pela Comissão Lancet, elas têm em comum o fato de estarem relacionadas ao sistema alimentar atual. O sistema alimentar é a cadeia composta por todas as atividades, pessoas, empresas, organizações e instituições envolvidas na alimentação. Ele começa na produção agropecuária, passa pelo processamento, distribuição, comércio, englobando todas as etapas que fazem com que o alimento chegue até a mesa do consumidor.Ele inclui ainda todas as estratégias midiáticas e educativas que influenciam as escolhas alimentares. A sua etapa final é a gestão dos resíduos gerados pelo sistema.

No mundo contemporâneo, este sistema se tornou globalizado e extremamente industrializado,dominado por multinacionais. Onipresentes na mídia e nas ruas, estas empresas transnacionais vendem conveniência e prazer. Duas maravilhas que, infelizmente, têm trazido como ônus diversos aditivos,conservantes, desrespeito à sazonalidade, aumento na emissão de carbono,entre tantos outros fatores prejudiciais à saúde humana e do planeta.

Deixarei a desnutrição e as alterações climáticas para outro momento. O foco aqui será a obesidade, uma vez que a COVID-19 jogou luz sobre ela e outras DCNT (doenças crônicas não transmissíveis), como o diabetes e a hipertensão, citadas como comorbidades para a doença. Tão graves que seus portadores foram incluídos na vacinação prioritária em alguns municípios.

Em se tratando da obesidade, proponho uma reflexão: não é espantoso que, apesar de toda a informação sobre nutrição, e das inúmeras dietas que surgem a cada nova estação, cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo estejam obesas? Por que será que isso acontece? A culpa é mesmo do obeso?

Corredor de mercado com alimentos ultraprocessados. Foto: Thayne Tuason/Creative Commons
Corredor de mercado com alimentos ultraprocessados. Foto: Thayne Tuason/Creative Commons

O relatório que citei lá no início,elaborado pela Comissão Lancet e publicado na revista de mesmo nome, propõe um novo olhar para esta questão. O grupo de cientistas defende que os estigmas relacionados ao obeso precisam ser mais investigados e mais bem entendidos. Nas culturas ocidentais, os obesos são culpabilizados por sua doença, e estigmatizados como menos disciplinados, preguiçosos, desmotivados. Estes preconceitos começam dentro da família e se estendem até aos profissionais de saúde. Isto faz com que os obesos evitem os consultórios médicos, onde se sentem pouco acolhidos. Tudo isto dificulta ainda mais o tratamento.

Encarar a obesidade como um fracasso pessoal e não como uma consequência direta da interação do ser humano com o ambiente ao seu redor prejudica a solução do problema. A Comissão Lancet defende, então, que a questão da obesidade deve ser apartada do indivíduo e vista sob quatro dimensões:

  • O aumento da obesidade a nível global (é preciso entender e divulgar as suas causas e as suas consequências sociais e econômicas);
  • A inércia de políticas públicas endereçadas a mitigar o problema (é necessário defender o aumento de impostos e a regulamentação publicitária dos produtos alimentícios com excesso de sal, gordura e açúcar, além de incentivar o investimento em campanhas educativas);
  • A falta de urgência dada ao tema (diferentemente do que ocorreu com o tabaco e com a AIDS, nunca houve uma real mobilização em torno da obesidade como doença),
  • A dissociação entre esta agenda e as outras questões de saúde pública e de sustentabilidade ambiental (evidenciar que estas problemáticas têm uma raiz comum daria mais força ao combate à doença).

Eu finalizo voltando ao título: a obesidade não é culpa do obeso, embora seja também responsabilidade dele. Dele e de todos nós. É preciso que a comida de verdade esteja ao alcance de todos, em todos os lugares. É necessário restaurar o lugar dela, ou seja, da comida in natura ou minimamente processada, em todos os espaços atualmente dominados por produtos alimentícios, cheios de aditivos que aumentam a sua palatabilidade. A comida de verdade deve estar disponível nas escolas e empresas; nos carros e nos transportes públicos; nos shoppings e nas feiras; nas refeições principais e nos lanches intermediários. Descascar mais e desembalar menos é o pretinho básico da alimentação saudável. Substituir os ultraprocessados por alimentos naturais, locais e sazonais é indispensável para a saúde humana e do planeta


Quem é Adriana Aguiar Aparício Fogel?

Adriana Aguiar Aparício Fogel é doutoranda em Mídias Digitais pela Universidade do Porto. Mestre em Educação pela UNIRIO. Publicitária formada pela UFRJ e pesquisadora da interação entre a alimentação, o corpo e a mídia.

* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews

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