Após a queda de Omar Hassan al-Bashir, foi criado o Conselho Soberano do Sudão, com a proposta de formar um governo temporário. O golpe do último 25 de outubro interrompeu um delicado processo de transição democrática
por Victor Maurício Barbosa de Vasconcellos em 24/11/21 16:18
O golpe militar ocorrido no Sudão no último dia 25 de outubro não foi bem uma surpresa. Quando civis e militares formaram um governo conjunto para conduzir o país até as eleições democráticas de 2022, já era possível prever que essa relação não seria muito amorosa.
Em 2019, após a queda de Omar Hassan al-Bashir, foi criado o Conselho Soberano do Sudão. A proposta era formar um governo temporário, onde civis e militares tivessem representatividade durante o período de transição democrática. Formado por seis civis e cinco militares, o Conselho Soberano conduziria o país por 39 meses, até as eleições livres de 2022. O golpe militar de outubro interrompeu esse delicado processo de transição democrática no Sudão, país que viveu por trinta anos sob as mãos de ferro do ditador Omar al-Bashir.
A formação do Conselho Soberano do Sudão não foi algo que ocorreu de forma amigável ou espontânea. Em 2019, em um contexto de grave crise econômica, manifestações civis pró-democracia tomaram as ruas do país exigindo a deposição de Omar al-Bashir.
Em abril daquele ano, uma junta militar prendeu al-Bashir e vários membros do governo. Os militares imediatamente suspenderam a constituição de 2005, declararam estado de emergência e se pronunciaram sobre a “necessidade” de permanecerem no poder por pelo menos dois anos.
É nesse contexto de tensão entre sociedade civil e militares que surge a proposta de um governo conjunto de transição. O Conselho Soberano emerge da pressão popular, através dos protestos civis que já ocorriam há quatro meses em várias cidades do país. Em uma dessas manifestações, em junho de 2019, militares abriram fogo contra civis e mataram 87 pessoas em Cartum, capital do Sudão.
No plano internacional, os EUA se mostraram nitidamente a favor da criação de um governo temporário que não estivesse concentrado nas mãos de militares islâmicos. É preciso lembrar que o Sudão sempre esteve direta ou indiretamente engajado em conflitos regionais contrários aos interesses americanos, seja apoiando a causa palestina, seja servindo de abrigo para células da al-Qaeda e do Hamas. O interesse americano no país se mostrou claro com a mediação do acordo de paz entre Sudão e Israel em 2020, ainda no governo Trump.
Com a criação do governo conjunto de transição, duas figuras se tornaram peças centrais na política sudanesa. Do lado militar, Abdel Fattah al-Burhan, além de já ocupar o cargo de presidente do Sudão, tornou-se líder do recém-criado Conselho Soberano. De acordo com o Projeto de Declaração Constitucional de agosto de 2019, a presidência do conselho deveria ser ocupada por um militar nos primeiros 21 meses e por um civil nos 18 meses seguintes (totalizando os 39 meses para as eleições de 2022). Do lado civil, Abdalla Hamdok foi nomeado primeiro-ministro e tinha apoio dos EUA e da ONU.
Na manhã de 25 de outubro, tropas sudanesas prenderam o primeiro-ministro Abdalla Hamdok e vários integrantes civis do gabinete do governo. O sinal de internet foi cortado e houve bloqueios em diferentes pontos da capital para reduzir a circulação de manifestantes. Os militares também ocuparam o aeroporto e estações de rádio e TV.
Poucas horas após as primeiras ações, Abdel Fattah al-Burhan decretou estado de emergência e comunicou que as eleições previstas para 2022 só ocorreriam no ano seguinte. O general dissolveu o gabinete civil e extinguiu o Conselho Soberano Sudanês. Em um pronunciamento na TV, o militar afirmou que o governo civil representava “uma ameaça para os sonhos da juventude”.
As semanas seguintes foram marcadas pela violenta repressão contra os diversos protestos pró-democracia. Em 30 de outubro, 12 pessoas morreram e centenas ficaram feridas na imensa manifestação que reivindicava a volta do governo civil. Mais recentemente, em 13 de novembro, outras cinco pessoas morreram em um protesto no leste de Cartum.
Desde o golpe, mais de cem funcionários do governo civil foram detidos. Vários líderes políticos e ativistas pró-democracia também permanecem sob custódia. O primeiro-ministro Abdalla Hamdok ainda está em prisão domiciliar.
A aproximação do Sudão com os EUA, fruto do acordo de paz com Israel, tende a se deteriorar com os militares no poder. Da mesma forma, os principais órgãos internacionais se mostraram claramente contrários ao golpe, o que pode levar o Sudão a um isolamento não muito desejável em um contexto de grave crise política e econômica.
Segundo Raphael Padula, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “o golpe jogou o Sudão para um cenário de isolamento do ponto de vista internacional, visto que o horizonte não democrático e o governo não reconhecido como legítimo pela comunidade internacional levam a sanções contra o país. Isso se revela nas pressões do Conselho de Segurança da ONU, nas retiradas de apoio econômico por parte dos EUA e do Banco Mundial e na suspensão da União Africana”.
O professor afirma ainda que “de forma geral, o episódio do Sudão pode ser visto como um caso comum entre nações africanas, ou seja, países de formação socio-estatal vulnerável e fragmentada combinada à presença de recursos naturais relevantes, o que impulsiona conflitos internos e atuações de atores externos, gerando um ambiente interno politicamente conflituoso e de subdesenvolvimento socioeconômico”.
Em entrevista à Associated Press, Stephane Dujarric, porta-voz da ONU, condenou o golpe e as ações que se desenrolaram desde 25 de outubro: “Queremos a volta do governo de transição o mais rápido possível. Queremos a libertação do primeiro-ministro Hamdok e de todos os outros políticos e líderes que foram detidos”.
Por enquanto, não há indícios de que o governo de transição retornará. Depois de trinta anos de opressão, parece que a democracia vai esperar mais uma vez.
Victor Maurício Barbosa de Vasconcellos é professor de geografia há 14 anos, com mestrado em Geografia pela UFRJ.
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