No livro “Como funciona o fascismo”, Jason Stanley utiliza fascismo para ultranacionalismos nos quais a nação é representada por um líder autoritário e exemplifica com os confederados norte-americanos. Eis um erro de principiante no estudo da História
por Valdinéli Ribeiro Martins em 31/08/21 15:36
As características do fascismo são conhecidas: autoritarismo reacionário pró elites econômicas, militarista, golpista, anticientífico, salvacionista, milicista, virilista aloprado e tantas outras. Se elencarmos todas as principais características, em todas ou quase pode se colocar ‘check’ ao lado na comparação com o que constatamos no movimento bolsonarista. Logo, o capitão e seus capitaneados são fascistas?
Depende. Por metonímia certamente. Chamamos todas as esponjas de aço de bombril, mesmo que Bombril, maiúsculo, seja apenas uma delas. Vamos falar em sentido estrito ou estamos num churrasco e queremos apenas “acabar” com ele? Se estivermos na segunda posição, então não há nada de errado, a metonímia serve muito bem, assim como chamar de nazista um neonazi ou de comunista um protossocialista que sonha com revolução. Afinal, é isso o que são.
Se alguém pensa e age como fascista, recebe representantes da AfD, reconhecida na Alemanha como de inclinações neonazi, se manda afagos aos autoritários do mundo e tira fotos com malucos fantasiados de Hitler ou afins, então dá para dizer que sim. É fascista. E não estaria completamente errado chamá-lo de franquista ou outro nome que o valha. Mas, e se… estivermos tentando falar de modo estrito, tentando estudar o fenômeno com suas características mínimas e compreendê-lo de tal modo que, conhecendo a doença, podemos conhecer também a cura? Aí é diferente. A afirmação é mais cuidadosa, assim como a negação é pouco assertiva.
Em seu bom, mas impreciso, livro “Como funciona o fascismo”, Jason Stanley utiliza o “rótulo” (sic) fascismo para ultranacionalismos nos quais a nação é representada na figura de um líder autoritário e, entre seus vários exemplos, fala dos confederados norte-americanos na época da Guerra da Secessão que ocorreu décadas antes do termo fascismo ser cunhado e Mussolini e Gentile e outros nascerem.
“Eis uma ideologia fascista clássica…”, escreve Stanley. Eis um erro de principiante no estudo da História, o famigerado anacronismo. A grosso modo, anacronismo é referir-se a um objeto histórico de uma época com termos próprios a outra.
Mas e se os confederados tiverem confirmadas características suficientes para, como o bolsonarismo, serem chamados de nazistas? E eles tinham essas características! Eram então nazifascistas? Não. Eram outra coisa, eram confederados. Mas como explicar que eram e não eram algo. Eram fascistas por metonímia, digamos. Ou seja, não eram, mas podem levar esse nome por imprecisão, mas estavam acometidos do mesmo mal. O que os aproxima é outra coisa, e pior, por ser subestimada. O nome dessa doença é reacionarismo.
Eu sei, reacionarismo é um termo que não desconta nossa raiva e é mais difícil de se comunicar usando termos menos populares, mas é a vida… É o custo da precisão, se a desejamos. Os fascismos são o reacionarismo constituído em um movimento. Reaças isolados não metem medo. Mas quanto mais organizado, mais próximo da imagem clássica do nazifascismo.
O movimento de rua passo a passo se organiza e se radicaliza: consegue tornar-se um partido, consegue tomar o governo, suspender as legalidades constitucionais, rasgar as instituições, perseguir adversários, torná-los inimigos objetivos da nação, expandir fronteiras, no limite talvez eliminar os que não seguem o grande líder ou que este não seleciona para viver. Mas esse é o limite chamado totalitarismo.
Voltemos ao bolsonarismo. Se o chamamos de fascista como Jason Stanley chamou os confederados estaremos
usando o diagnóstico genérico em vez do diagnóstico acurado. Fascismo existiu um, “fascismos” há muitos. Cada doença precisa de uma cura, cada doença deve ter sua designação própria. A doença é os movimentos reacionários; confederacionismos, bolsonarismos, franquismos, salazarismos, fascismos e nazismos são suas manifestações, suas variações reinventadas que não fluem necessariamente de Mussolini, fluem da inclinação política reacionária.
Uma peste! O oposto do revolucionarismo. Este quer quebrar as instituições ao meio, para supostamente levar a um progresso em muito pouco tempo. Reacionarismo quer o regresso, mas um regresso muito grande nas instituições, nos costumes, na organização do povo, e para isso ambos utilizam de artifícios parecidos de controle. O reacionarismo é a peste que, cuja ideologia (um conjunto de ideias supostamente lógico inventado a partir de poucas ideias de base) apoia-se em Deus, nação, pureza, honra, virilidade, força, hierarquia… É nesse âmbito mínimo de ideias que surge a crença de superioridade do movimento reacionário nas repúblicas modernas.
Reacionários veem a nação de modo primitivo e tribal e anseiam a purificação dos outros. Nunca encontrando na própria miscigenação sinal de impureza, somente na miscigenação alheia. Foi assim antes do fascismo, continuou sendo após sua queda. Uma coisa é a doença: o modo como as pessoas tendem a pensar politicamente de acordo com suas tendências pessoais, em parte impulsivas e em parte racionalmente aprendidas. Outra, são os sintomas que dependem do organismo, do país e da época em que se instala: o movimento político, conjunto mais ou menos coeso de pessoas em torno a ideias comuns que pode se tornar um sistema bem fundamentado de proposições ou não e ainda um grupo bem organizado de pessoas ou não.
Há uma fraqueza nesse pensamento, afinal precisamos utilizar de modo menos estrito certos termos para conseguirmos nos comunicar. Um exemplo é a palavra democracia. Surgiu numa Grécia tão antiga, que o significado era outro, dizem que até pejorativo. Quando hoje no Brasil atual falamos em democracia, falamos de outra coisa, mas a mesma palavra nos remete a coisas diferentes, ainda que próximas, sem que a gente se perca no raciocínio.
Mas ainda assim pode-se falar de modo mais preciso sobre as democracias como democracias representativas, republicanas, modernas… entre outras atualizações. Ou seja, não há regra absoluta. Pode-se usar um nome para se referir a fenômenos complexos em política, desde que se saiba que há subdivisões necessárias a serem consideradas.
Fascismo é um guarda-chuva impreciso arranjado para abarcar e nomear algo anterior e posterior a Mussolini: movimentos reacionários. Defendo que referir-se a vários movimentos políticos diferentes com o mesmo nome é ruim porque não privilegia as diferenças específicas de cada movimento e como tal dificulta o entendimento e o consequente poder de ação contrário aos autoritarismos deles resultantes.
E referir-se às tendências políticas através da História que desenvolvem vários movimentos diferentes, ainda que parecidos, é mais desejável exatamente porque privilegia a especificidade de cada evento histórico, facilitando o entendimento e a ação preventiva ou contrária aos autoritarismos, aos movimentos antidemocráticos, reacionários, primitivistas.
O bolsonarismo se aproxima mais das “democracias iliberais” da Hungria e Turquia até o momento, nunca se constituiu em partido ou em movimento coeso como no século XX, e pode descambar em uma ditadura clássica sul-americana, ou num protofascismo pseudodemocrático novo. Todas essas variações são próximas e, em geral, afora Maduro, são reacionárias e tendem a não romper claramente a democracia, mas não a deixam em paz também. Não nos deixam em paz.
E então? Depois disso tudo. A metonímia ou o senso estrito permanece? Vai! Pode me dizer: no que digo nos meus churrascos mando eu.
Pai, graduado em Filosofia – UFPR, fotógrafo amador, aficionado por política, literatura e afins.
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