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Checagem de fatos

Como reconhecer um discurso negacionista

Uma das “artimanhas” utilizadas pelos negacionistas da ciência é tentar fazer com que seus discursos tenham cara de ciência. Apresentam números, comparativos e citam experiências.

por Karen Gimenez em 27/07/22 07:51

O nome é complicado e até parece “chique”: camuflagem objetivante. Expressão criada pelo linguista lituano erradicado na França, Algirdas Julius Greimas, essa tal de “camuflagem objetivante” é um dos elementos que mais engana o cidadão comum quando este se depara com um discurso negacionista. Usada exaustivamente durante a pandemia da Covid-19 para tentar justificar medidas que a CPI revelou como bem mais políticas do que científicas, busca dar uma aparência de ciência algo que não tem qualquer relação com ela. E, na correria do dia a dia, vez por outra acabamos caindo na armadilha.

Uma das “artimanhas” utilizadas pelos negacionistas da ciência ao estruturar seus argumentos é justamente tentar fazer com que seus eles tenham cara de ciência. Alguns discursos negacionistas apresentam números, comparativos, citam experiências, trazem até nomes de instituições a tiracolo para dar legitimidade, aproveitando que a maioria da população não é versada em temas muito técnicos. É a tal “camuflagem objetivante”, que Greimas detectou em seus estudos linguísticos. Disfarçar de ciência algo que não é científico pode parecer um contrassenso, mas funciona quando a ideia é confundir.

E muitas vezes eles conseguem o intento porque o resultado à primeira vista parece confiável. E agora? Como aquele que não é cientista ou pesquisador consegue separar o joio do trigo sem precisar entrar em uma maratona acadêmica?

Se por um lado alguns negacionistas se portam como bufões ou personagens de histórias apocalípticas claramente improváveis, outros são bons no que fazem e levam mais tempo para ser descobertos. Tomar alguns cuidados nem sempre garante que vamos escapar de todas as armadilhas, mas ajuda a fazer um bom filtro.

Como vimos há pouco o fato de ser um texto objetivo, racional, impessoal, com dados elencados de maneira lógica (a tal camuflagem objetivante) não é garantia de nada. A primeira providência que podemos tomar para evitarmos cair no conto negacionista, é tentar checar se há algum desmentido sobre o que é apresentado. É uma tarefa relativamente fácil, mas dá um pouco de trabalho.

Ou procura-se diretamente um serviço gratuito de checagem – Agência Lupa, Aos Fatos, Fato ou Fake, Boatos.org são alguns exemplos – ou uma simples busca no Google com os termos corretos já ajuda.  Exemplo: cloroquina + covid + mentira ou cloroquina + covid + informação falsa ou ainda cloroquina + covid + checagem, dentre outras combinações que podem ajudá-lo a encontrar o contraponto da informação que chegou até você pelo grupo de whatsapp da família.

Fazer uma busca pelo nome do autor da afirmação, pela instituição que ampara a informação, bem como a credibilidade do veículo que a publicou é outra medida que ajuda a detectar fraudes ou conteúdo negacionista. Ter um doutorado não é garantia de conhecimento sobre um determinado assunto. Vimos muito isso na CPI da pandemia com médicos de especialidades bem distantes da infectologia apoiando indicações comprovadamente não eficazes e se agarrando ao título de médico, como garantia técnica. Antes de dar aval para a fonte veja o que ela fez antes daquela publicação: se essa fonte tem um histórico profissional que possa colocá-la na posição de especialista especificamente no assunto em questão

Não se deixe impressionar por aval de associações. Algumas são criadas especificamente para tentar dar importância para algum conteúdo. Qualquer pessoa pode abrir um CNPJ com o nome de Associação Internacional de alguma coisa, sem que isso tenha qualquer chancela técnica. Até os terraplanistas criaram, há alguns anos, uma “associação de técnicos e pesquisadores” que tenta se apresentar como um instituto de pesquisa. Por isso, checar a idoneidade da associação que supostamente banca a informação ajuda também. Dá para fazer pelo Google.

Outra dica é desconfiar de quem publica, principalmente quando é algum veículo do qual você nunca ouviu falar. Será que se fosse uma descoberta científica tão relevante assim, ela não estaria presente em pelo menos alguns veículos de grande alcance, que tem equipes de reportagens espalhadas pelo mundo, correndo 24 horas por dia atrás de notícias?

Outro alerta que pode indicar um texto negacionista é quando encontramos termos muito genéricos. Pesquisas dizem, cientistas afirmam sem mostrar exatamente que cientista e de onde ele é são sinais muito claros de que se deve ficar com um, ou até com os dois pés atrás.

Afirmações muito impactantes vindas de alguma fonte não convencional também podem ser consideradas sinais de alerta. São os chamados clickbaits. Frases como: “tudo o que o seu professor escondeu de você” ou “o tratamento que a indústria farmacêutica não quer que você saiba”. Sabemos que a ciência é dinâmica e eventualmente surgem descobertas que alteram os rumos, mas isso dificilmente é feito por um cidadão comum. A ciência tem método e checagem. Qualquer possível descoberta precisa ser testada, analisada por pares, revisada várias vezes antes de ser validada. E mesmo assim ainda acontecem erros. Não é porque a dor de cabeça do seu vizinho foi embora depois que ele comeu um matinho estranho, que os analgésicos perderam a validade.  O mais provável é que a dor de cabeça se dissiparia por si só com ou sem a degustação do tal matinho.

Uma outra armadilha perigosa é o que eu chamo de “apelo à concretude”. São aqueles argumentos ou associações simplórias que em um primeiro olhar parecem tão lógicos, do estilo porque não pensei nisso antes, mas que, na verdade, estão tentando desestruturar pensamentos complexos, compostos de muitas camadas além da superfície.

No auge da Covid-19 esses apelos apareceram, por exemplo, por aqueles que se posicionavam contra o uso das máscaras. Um dos argumentos mais comuns era o de supostos malefícios causados pelo uso de máscara, devido a parte do ar ficar retida no equipamento gerando uma certa umidade após muito tempo de uso.

Depois do uso da máscara por um certo período conseguimos sim notar concretamente uma tendência à umidade nela. Essa percepção pode levar a um receio imediato porque aquela possível umidade é algo concreto, conseguimos ver. Mas daí a afirmar que a máscara não deve ser usada ou que traz algum malefício, há toda uma complexidade técnica que a grande maioria de nós não consegue compreender. Até mesmo porque o processo de transmissão de uma doença conta com uma série de elementos não visíveis e dos quais nunca ouvimos falar e que não sabemos como se relacionam. Só que a umidade na máscara é visível, é concreta, e por isso torna o argumento dos negacionistas atrativo (acredito no que eu vejo)

Nesse conjunto estão também as exceções tomadas pelo todo.  São associações como: uma pessoa pegou covid e foi hospitalizada mesmo depois de ter tomado três doses de vacina, então isso seria uma prova que a vacina não tem efeito.

Eu classificaria o “apelo à concretude” e as exceções tomadas pelo todo dentre os elementos mais poderosos do discurso negacionista. Porque eles nos dão a irreal sensação de poder, de sapiência, de que conseguimos enxergar algo, de que temos domínio sobre temas dos quais não temos a mínima noção, mas que pela superficialidade das associações nos parecem luminosos. Quando lhe vier à mente uma conclusão rápida sobre algo que muita gente estuda há anos e não conseguiu chegar a um resultado, desconfie de si mesmo.  A história tem mentes brilhantes que enxergaram coisas que ninguém viu. Mas mesmo esses iluminados antes de saírem gritando “eureca” pesquisaram, utilizaram métodos e colocaram suas conclusões a severas avaliações por pares.  E a maioria absoluta de nós, é composta por cidadãos comuns.

Se tudo isso pareceu dar muito trabalho, tem uma opção mais simples para fugir do negacionismo: não compartilhe e desconfie sempre.

*Karen Gimenez é mestre em Comunicação, jornalista com pós-graduação em Estratégia Empresarial e geógrafa. É professora de pós-graduação da Universidade Paulista, pesquisadora associada do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão – Escola do Futuro da Universidade de São Paulo; facilitadora convidada do Sebrae-SP e consultora em Comunicação, Gerenciamento de Crises e Programas de Desenvolvimento para empresas e instituições. O conteúdo deste artigo é de cunho pessoal e não representa qualquer posicionamento das instituições para as quais a autora trabalha.

Para saber mais:

DA EMPOLI, Giulliano. Os engenheiros do caos. 1ª ed. São Paulo: Vestígio 2019. Edição do Kindle.

D’ANCONA, Mattew. Pós-verdade – A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. 1ª ed. Barueri: Faro Editorial, 2018.

GIMENEZ, Karen. A DESCRENÇA NO DISCURSO DA CIÊNCIA: A teoria da conspiração no discurso da Terra plana. Dissertação de Mestrado – Universidade Paulista (Unip). Fevereiro 2022. Disponível em: https://www.slideshare.net/KarenGimenez2/a-descrena-no-discurso-da-cincia-a-teoria-da-conspirao-no-discurso-da-terra-plana

FAUSTINO,Marco, PACHECO, Priscilla. Ao defender ‘tratamento precoce’, Heinze falseia fatos e distorce dados na CPI da Covid-19. Aos Fatos agência de checagem. 2/06/2021. Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/ao-defender-tratamento-precoce-heinze-falseia-fatos-e-distorce-dados-na-cpi-da-covid-19/. Acesso: 10/08/2021

FIORIN, José Luiz. As astúcias da Enunciação, 3a. ed. São Paulo: Ed. Contexto, 2016

FIORIN, José Luiz. Elementos da Análise do Discurso. 15a ed.São Paulo: Contexto, 1989

GREIMAS, Algridas Julien. Sobre o Sentido II. 1ª ed. São Paulo: Edusp, 2014

GREIMAS, Algridas Julien. COURTES, J. Dicionário de Semiótica. 2a ed. São Paulo: Contexto, 2014

 

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