Ícone buscar Ícone abrir menu

jornalismo independente

Notícias

LIVRO QUE INSPIROU FILME

“Ainda estou aqui” foi usado por filha de Rubens Paiva contra Bolsonaro

Vera Paiva usou trechos do livro que conta história de sua família em voto proferido contra fechamento da Comissão de Mortos e Desaparecidos no final do governo passado

por Evandro Éboli em 11/01/25 15:12

Vera Paiva em protesto em frente ao Palácio do Planalto contra a demora do governo Lula em recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos, em 2023 | Foto: Evandro Éboli

Em 30 de agosto de 2023, pleno governo Lula, um grupo de familiares e perseguidos pela ditadura foram para a frente do Palácio do Planalto cobrar do presidente uma de suas promessas de campanha: a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, fechada e extinta num último ato do governo de Jair Bolsonaro, um admirador confesso do regime de opressão e que cultua torturadores.

Neste grupo, estava a professora de psicologia da USP Vera Paiva, filha mais velha do casal Eunice e Rubens Paiva, morto e desaparecido pelos militares em janeiro de 1971. Naquele dia, uma cena insólita. Enquanto protestavam contra a letargia do governo, na Praça dos Três Poderes, ao lado uma banda de fuzileiros navais ensaiava para o desfile 7 de Setembro que se avizinhava. Jovens militares  que passavam ao lado de cartazes com fotos de desaparecidos políticos tocando hinos e marchas das Forças Armadas.  Nesta cena, Vera foi uma dos familiares que improvisavam na melodia o canto e grito de “pela vida, pela paz, ditadura nunca mais”.

Leia mais: Destituída, presidente da Comissão de Anistia diz que pegou ‘terra arrasada’

Esta foi uma das circunstâncias que cruzei com Vera numa cobertura jornalística. Uma outra ocorreu nove anos antes, em 1º de abril de 2014, na inauguração do busto de Rubens Paiva num ponto central e de muita visibilidade na Câmara dos Deputados. “Defensor da liberdade e da democracia” é a inscrição no pequeno monumento em homenagem ao ex-deputado alvo da ditadura.

Quem apareceu no evento, num deliberado propósito de provocação, foi o então deputado Jair Bolsonaro,  filiado ao PP à época. Passou rápido, cercado por dois asseclas, vaiou e simulou uma cusparada em direção ao busto. Não ficou para enfrentar os protestos que seguiram.

“O Bolsonaro passar aqui e vaiar o busto de meu pai é um escândalo. Na democracia ele pode fazer isso, mas na ditadura iríamos presos”, disse Vera naquele dia, sobre um episódio que relembra até hoje com a indignação do tamanho da repulsa que o episódio provoca.

Uma terceira pauta com Vera foi em outra ‘página infeliz da nossa história’, quando  Bolsonaro, agora presidente da República, fechou, encerrou o trabalho da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que tinha entre suas missões levantar informações e tentar localizar o paradeiro das quase duas centenas de brasileiros que nunca mais foram vistos. Foi em 15 de dezembro de 2022 que a comissão, da qual Vera integrava e que estava  repleta de aliados daquele governo, sepultou esse colegiado, por 4 votos a 3.

A filha de Eunice e Rubens Paiva leu um voto histórico e memorável. Votou depois que os bolsonaristas já tinham formado maioria para sepultar a comissão. Para conseguir alguma atenção desse grupo, que olhava o celular de forma dissimulada, a professora da USP soltou um sonoro “Me escutem”. Cobrou ela atenção dos bolsonaristas, recorrendo, nas suas palavras, a uma “entonação psicodramática”, adquirida no ofício de professora. Na véspera dessa fatídica sessão,Vera dormiu 12 horas e disse que, nesses momentos, recorre a “elegância combativa” de sua mãe.

“Ainda estou aqui”

O voto de Vera naquela sessão é memorável, denso e extenso, com com 185 linhas, 3.266 palavras e 19.942 caracteres. Disse para aqueles interlocutores: “Assumam, sem nossa cumplicidade, o modo como querem entrar para a história”. E pediu para que sua assinatura fosse retirada do relatório final.

Na sequência, Vera Paiva fez a primeira citação ao livro do irmão, Marcelo Rubens Paiva – “Ainda estou aqui” – obra que lembrou o tempo inteiro na sua manifestação.

“Não nos peçam para esquecer, sempre estaremos aqui. Cito entre aspas trechos do livro de Marcelo Rubens Paiva, meu irmão, Ainda estou aqui”. O livro deu base para o filme do mesmo nome e que alcança estrondoso sucesso no exterior e tem levado milhões de brasileiros aos cinemas para conhecerem a história da família de Vera, de seus pais e irmãos. Parte desses expectadores tomam ciência agora da obscura ditadura que atingiu o Brasil durante 21 anos.

“Não nos peçam para esquecer os motivos da luta daqueles que foram presos, torturados e assassinados em tempos de ditadura militar, que nesse caso da tortura, desaparecimento e assassinatos políticos nunca acabaram”, introduziu na sua fala.

Em suma, Vera, há dois anos, recorreu à obra do irmão para rejeitar e confrontar a medida sem adjetivo de Bolsonaro em dar cabo da comissão.

“Minha mãe Eunice Paiva foi das primeiras pessoas indicadas por essa Comissão. Não aguentou, pediu para sair depois de um tempo, para se dedicar ao trabalho como advogada no campo dos Direitos Humanos. Dizia que os depoimentos a assombravam noite e dia, desequilibrando a difícil sanidade mental que a permitiu criar sozinha 5 filhos”, relatou Vera.

Vera Paiva profere seu voto na sessão que pôs fim a Comissão de Mortos e Desaparecidos no governo Bolsonaro | Foto: Clarice Castro/Divulgação

“Em outro trecho Marcelo conta o que sabemos de testemunhas do assassinato de nosso pai: 20 de janeiro de 1971. Meu pai apanhou por dois dias seguidos. Apanhou assim que chegou na 3ª Zona Aérea, interrogado pelo próprio brigadeiro João Paulo Burnier. Apanhou no DOI-Codi, no quartel do 1º Exército no RJ. Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil fisicamente. E vaidoso”.

Eunice Paiva também foi presa, e libertada. E Vera lê em seu voto novo trecho do livro-filme de Marcelo, diante dos indicados por Bolsonaro para tão-somente lacrarem a Comissão de Mortos e Desaparecidos, mas que tiveram que ouvir um relato de dor, perseguição, tortura e morte promovidas pelo regime de exceção.

“Continua Marcelo, nossa mãe tinha perdido vinte quilos. Ficou presa numa cela de fundo, em que quase ninguém aparecia. Sem sol. Ela não viu meu pai, apenas sua foto no álbum de presos, o que a deixou contraditoriamente aliviada, pois então ele estava ali, nas mesmas dependências, vivo, e ao mesmo tempo angustiada, pois seu rosto fazia companhia ao de centenas de presos, suspeitos, guerrilheiros, terroristas, inimigos do sistema, procurados, mortos em combate, torturados, subversivos”.

Em nova referência ao livro, a conquista da certidão de óbito responsabilizando o Estado pela morte de seu pai.

“Segue o Marcelo: vinte e cinco anos depois da prisão, meu pai, um dos homens mais simpáticos e risonhos que Antônio Callado conheceu, morria por decreto, graças à Lei dos Desaparecidos, vinte e cinco anos depois de ter morrido por tortura”. O que ocorreu em 1996.

“Ela (Eunice) então ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Na capa de todos os jornais no dia seguinte, com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória”. Essa foi uma das passagens também marcantes retratadas no filme.

Uma outra passagem, talvez a mais reverberada na propaganda de “Ainda estou aqui”, foi contada assim por Marcelo e citada por Vera em seu voto.

“Ela (Eunice) que jurou que nunca faria uma cara triste. Sorria. Bem que tentaram. Por anos, fotógrafos nos queriam tristes nas fotos. Sim éramos ‘A família vítima da ditadura’. Apesar de preferirmos a legenda ‘Uma das muitas famílias vítimas’. A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva”.

Se cabe um termo do futebol, e de outros esportes, Vera “vendeu caro” a derrota.

Clique neste link e seja membro do MyNews — ser inscrito é bom, mas ser membro é exclusivo!

Ex-preso político da ditadura fala sobre a importância de recriar comissão:

Comentários ( 0 )

Comentar

MyNews é um canal de jornalismo independente. Nossa missão é levar informação bem apurada, análise de qualidade e diversidade de opiniões para você tomar a melhor decisão.

Copyright © 2022 – Canal MyNews – Todos os direitos reservados.

Entre no grupo e fique por dentro das noticias!

Grupo do WhatsApp

Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo.

ACEITAR