Em momento que as atenções se dividem entre o incêndio na Cinemateca e a incandescente troca de farpas entre Bolsonaro e Barroso, vale refletir sobre as similitudes entre o clássico “O Sétimo Selo” e aspectos da ainda atual realidade pandêmica no Brasil
por Creomar de Souza em 05/08/21 09:18
A sétima arte oferece instrumentos singulares de interpretação dos desafios da existência humana. Vários são os filmes que ao longo do tempo foram percebidos como experiências inequívocas de interpretação de dilemas dos mais diferentes matizes. Dentre estes, chama atenção o clássico “O Sétimo Selo”, do magistral Ingmar Bergman. Nesta obra, derivada de uma peça teatral bastante consagrada, vemos a jornada de dois homens, o cavaleiro Antonius Block e seu escudeiro, Jons.
Ao retornarem para casa após a participação em uma das Cruzadas, os protagonistas são surpreendidos por uma Europa devastada pela Peste Bubônica. A estupefação diante do fato de que a morte os persegue, dá espaço para o vislumbre das formas distintas com que cada um deles enxerga suas existências e o possível final de jornada na Terra. Aqui, ressaltam-se dois elementos importantes de contraste. Enquanto Jons tem um olhar cético sobre a vida e o pós-vida, encarando-a apenas como um vazio que decorre do sofrimento encarnado, Block é atormentado pelas incertezas de suas escolhas e de um certo desespero contido no fato de que o único ente sobrenatural que se manifesta para si é a morte.
Diante de todo o poder e majestade com que um cavaleiro é criado, Block assume uma atitude de aferrar-se à vida com unhas e dentes. Esta posição, manifesta na partida de xadrez entre o Cavaleiro e a Morte, não deixa de demonstrar uma certa covardia diante do futuro. O desalento que caracteriza Jons é uma demonstração do estado de desamparo em que o subordinado se sente diante da realidade. Traçando um paralelo com o país que vivemos, é possível dizer que uma parte considerável da sociedade, principalmente os mais pobres, sente-se conformada e desamparada diante da morte que se tornou uma variável cada dia mais forte no cotidiano nacional.
O Brasil mata muito e a mãe gentil dos filhos deste solo é pródiga em prover meios para que seus frutos possam viver em prosperidade. A percepção desta prodigalidade em momento de tempestade perfeita, tem transformado o cidadão médio brasileiro em uma caricatura mixada de Antonius e Jons. Pois, ao mesmo tempo que busca apoio do Leviatã diante das monstruosidades representadas pela pandemia, a fome e o desemprego, internaliza que este não se preocupa com nada que não sejam seus próprios interesses.
Neste aspecto, não deixa de ser interessante observar os últimos desdobramentos da cena política. Ao mesmo tempo em que se desenvolve a passos largos uma série de elementos críticos para o futuro da República e da democracia nacional, questões prioritárias são postas em segundo plano, tais como o aceleramento da vacinação, a criação de uma lógica de doses de reforço contra a covid-19 e a retomada econômica. Com o debate público permeado por enorme confusão, resta aos cidadãos apelarem a si mesmos e rogarem ao universo a melhoria de seus destinos.
Diante da inércia da tomada de decisão em focar suas energias no principal, percebe-se uma enorme dificuldade destes de compreender os desafios que a realidade impõe para milhões que estão neste exato momento sendo vitimados por fome, desemprego, ou pela pandemia. Cabe ressaltar que este imobilismo é fruto do choque de vaidades de homens preocupados em jogar xadrez com a morte alheia e a tempestade perfeita em que estamos inseridos resguarda um futuro sombrio. A incapacidade dos cavaleiros da pós-modernidade, investidos de poderes políticos, de compreender o verdadeiro sentido de sua missão, é, portanto, prenúncio do aprofundamento de uma tragédia que se consolida a cada dia.
A partida de xadrez sem fim que este país joga com a morte, cujo diagnóstico até aqui soma mais de 550 mil derrotas para cada um de nós, é o sinal de que é necessário iniciarmos agora aquilo que desejamos. Caso contrário, o resultado de nossos esforços será, em futuro próximo, apenas aquele de tentar cobrir nossos rostos da vergonha de termos falhado não apenas com aqueles que se foram de maneira fútil, mas, sobretudo, com aqueles que sobreviveram à covid-19, mas foram consumidos pela sua onda de choque.
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