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Creomar de Souza

O risco da terceirização de responsabilidades

Em detrimento da postura socrática de responsabilidade, atual gestão brasileira de crise prefere terceirizar a culpa e fugir das consequências

por Creomar de Souza em 15/04/21 10:40

Sócrates, talvez o filósofo clássico mais citado pelo senso comum, não deixou nada escrito. Suas reflexões, métodos e observações chegaram até os dias atuais pelo trabalho abnegado de seus seguidores. De sua obra, por assim dizer, destacam-se a maiêutica e ironia, como pilares fundamentais de um método filosófico que revolucionou a forma de pensar no Ocidente, mas que valeu a Sócrates a acusação de negar os “deuses do Estado e corromper os jovens”.

Ao repelir as acusações, segundo Xenofonte, o pai da filosofia teria dito: Cidadãos! (…) estou certo que tanto quanto o passado, me renderá o porvir o testemunho de que nunca fiz mal a ninguém, jamais tornei ninguém mais vicioso, mas servia os que comigo privavam ensinando-lhes sem retribuição tudo o que podia de bem”. Diante da impassividade do júri aos seus argumentos, Sócrates viu-se condenado à morte, sem, contudo, renunciar as suas convicções e responsabilidades.

 'A Morte de Socrates', obra de Jacques-Louis David, 1787.
‘A Morte de Sócrates’, obra de Jacques-Louis David, 1787. Foto: Reprodução (Wikicommons).

Agora, imagine se Sócrates, diante da situação em que se encontrava, decidisse de súbito aceitar as acusações postas, renunciar àquilo que pregava e medir-se pelos olhares daqueles que se ofendiam com suas convicções? Fazendo um exercício contrafactual não causaria surpresa dizer que provavelmente seu exemplo e suas lições causariam menos comoção e engajamento e que, possivelmente, nenhum dos seus discípulos se daria ao trabalho de eternizá-lo como um exemplo de crença e responsabilização.

E aqui reside um elemento bastante contrastante entre o exemplo de Sócrates e o atual quadro político e social que vivemos. O ambiente sociopolítico parece povoado de um enorme esforço dos atores, individual e coletivamente, de se furtarem a assumir suas responsabilidades, tanto em âmbito moral, quanto civilizatório. A recusa de compreender a gravidade da situação em que os mais vulneráveis se encontram, o esforço em normalizar a fome, a violência e a falência da governança pública, tem como efeito prático a criação de um horizonte aterrador.

A marcha fúnebre rumo ao meio milhão de brasileiros mortos pela covid-19 não dá sinais de arrefecimento. E mesmo assim, vemos todos os dias uma avalanche de atos que, se já não surpreendem, continuam a chocar pela insensibilidade ou irresponsabilidade de líderes e certos grupos. Da política externa à administração municipal, grassam exemplos que colocam em xeque a nossa própria convicção de que estamos imersos em uma sociedade do século 21.

Ao contrário, ações como o furto de vacinas, opções por tratamentos comprovadamente ineficazes ou soluções xamânicas buscadas no Oriente Médio mostram não apenas um vazio em termos de tecnologia de governo. Demonstram também um enorme esforço de atores importantes, com e sem mandato político, de se furtarem a suas responsabilidades em um momento tão crítico.

O exemplo de Sócrates inspirou Platão, Xenofonte, Aristófanes e tantos outros no caminho da iluminação e busca da verdade intelectualizada. O exemplo atual de quem abre mão de sua responsabilidade, em nome de ganhos pessoais e de seu fervor cego a ideologias exóticas, também tem efeito cascata, mas no sentido contrário ao exemplo socrático. Em vez de irradiar o conhecimento que ilumina, impõe as trevas por meio da terceirização de responsabilidades ou a omissão diante da dor e do sofrimento de milhões de brasileiros espremidos entre a insegurança alimentar e a falta de leitos hospitalares, num efeito cascata devastador sobre uma série de agentes públicos distribuídos ao redor do país.

É fundamental uma reflexão coletiva para pactuar prioridades mínimas para a superação da crise. O mais urgente é uma ação concreta de combate à fome, diante do impacto da pandemia sobre as populações economicamente vulneráveis, a ser implementada com medidas de distanciamento social, apoio contínuo aos pequenos empresários e acesso a vacinas. A lógica de confusão e confronto precisa ser abandonada, sob pena de entrarmos em um espaço irreversível de degradação da própria lógica civilizacional. O risco não está em um inimigo externo ou numa coalizão ideológica inventada nos porões da internet, ele está na incapacidade das esferas decisórias superiores de reconhecerem as prioridades da nação e atacá-las de maneira minimamente eficaz.

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