Ao contrário do que prega o senso comum, a medida pode inclusive reduzir o número de procedimentos, como aconteceu em outros países
por Áurea Carolina em 20/01/21 16:19
Na última semana de 2020, um lampejo de esperança coloriu de verde as ruas e as redes sociais em toda a América Latina. A mobilização histórica das mulheres argentinas pela garantia de seus direitos sexuais e reprodutivos foi vitoriosa: o aborto legal, seguro e gratuito foi aprovado pelo Congresso argentino e será lei no país.
É uma vitória muito importante. Também por aqui, movimentos de mulheres em todo o Brasil atuam há décadas pela vida de todas nós. A discussão sobre o aborto legal, seguro e gratuito é urgente e deve ser tratada no campo da saúde pública. Enfrentar a perspectiva moralizante e anticientífica que leva à criminalização precisa ser uma prioridade para todos e todas que defendem os direitos das mulheres.
Já sabemos há anos que o aborto é uma realidade na vida de mulheres de diversas idades, credos e classes sociais. De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto 2016, aos 40 anos, uma em cada cinco das mulheres brasileiras terá feito pelo menos um aborto. Ainda assim, nosso Código Penal determina que as mulheres que realizam o procedimento podem ser presas por até três anos ou investigadas até oito anos depois do ato.
Para além de ser um limitador para o debate público sobre o assunto e um ataque gravíssimo à nossa liberdade de crença, a criminalização é letal, principalmente para mulheres pobres, negras e indígenas – que têm menos acesso às políticas públicas e estão muitas vezes em situação de vulnerabilidade. Dados da OMS mostram que o aborto clandestino é a quinta causa de mortalidade materna em nosso país.
Mesmo nos casos em que a interrupção da gravidez é permitida pela lei, meninas e mulheres encontram obstáculos terríveis para fazerem valer seus direitos. No ano passado, acompanhamos estarrecidas a saga de uma criança de apenas dez anos que sofria violência sexual do próprio tio para ter acesso ao aborto legal.
Obviamente, não era um caso isolado. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 mostrou que quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora em nosso país. A novidade nesse caso foi a absurda tentativa de interferência do Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos que, em sua cruzada contra o aborto, colocou em risco a vida da própria menina.
Legalizar o aborto é uma condição indispensável para enfrentar uma face perversa da violência de gênero e efetivar os direitos sexuais e reprodutivos de todas as mulheres. Ao contrário do que prega o senso comum, a medida pode inclusive reduzir o número de procedimentos, como aconteceu na Espanha e em Portugal, que legalizaram a prática e investiram na oferta de contraceptivos. As evidências mostram que o que realmente impede que abortos aconteçam é o fortalecimento das políticas de saúde acessíveis e universais, baseadas em respeito, informação e autonomia.
Com esperança de que a vitória argentina ecoe em toda a América Latina, nós reforçamos o lema das nossas hermanas: educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto seguro para não morrer! Seguimos em luta.
Áurea Carolina, mãe do Jorge Luz, é deputada federal pelo PSOL-MG, educadora popular, lutadora negra feminista e mestra em Ciência Política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)
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