Ao reduzir salários, Google ressuscita o velho conflito entre capital e trabalho do século 19 nas empresas de serviços tecnologicamente avançados
por Francisco Saboya em 25/08/21 14:01
A discussão sobre a reconfiguração dos espaços de trabalho, sejam casas ou escritórios, segue acesa. O tema foi assunto da coluna passada, e volta aqui por demanda de uns poucos leitores e pela importância do assunto nesse momento de retomada econômica.
O movimento das big techs há tempos tornou-se balisa para a organização do trabalho em empresas intensivas em tecnologia. De pufes coloridos a mesas de bilhar em ambientes grafitados, tudo ali parece mais leve e sedutor para o trabalhador do conhecimento. Foram pioneiras na adoção do home office no início da pandemia, e agora surpreendem pela maneira crua como vêm articulando o retorno às atividades presenciais. Google à frente, causou surpresa a proposta de redução de salários para quem morasse em lugares cujo custo de vida médio fosse mais baixo. A escolha do local de trabalho (se escritório ou domicílio) é democraticamente compartilhada, mas haveria uma tabela de parametrização dos novos salários.
A reconhecida capacidade de inovação tecnológica e criatividade na gestão de negócios das big techs só não é maior do que sua ambição. Dominar o mundo parece tudo, mas é apenas uma das facetas do propósito corporativo. A disputa narcísica pela condição de ser ‘A’ maior em qualquer coisa leva essas empresas a situações bisonhas. Desde cenas infantilizadas de dois dos maiores executivos da atualidade disputando pra ver quem brinca primeiro de gravidade zero, até propostas indecentes de redução de salários para empregados em home office.
Neste último caso, não tem nada de infantilidade (o outro também não, por trás; embora pareça, pela frente). Trata-se da busca natural pela maximização dos resultados financeiros dos negócios. É preciso estar ali nos top 10 da Forbes a qualquer custo. Faz parte da narrativa que suporta a construção de imaginários de poder e sucesso na sociedade digital. (A propósito, o formato fálico do New Shepherd de Bezzos foi mais comentado do que as propriedades aerodinâmicas do foguete em si).
Aparentemente, há um paradoxo nas estratégias de gestão de pessoas em empresas como Google. Enquanto expoentes da chamada nova economia, essas empresas são intensivas em capital humano qualificado – por definição mais criativo, questionador, autônomo e escasso. E, em tese, deveriam estar mais atentas aos riscos de fuga de talentos e às dificuldades de formação de novas equipes como consequência de medidas que não estão centradas no bem estar do trabalhador.
É fato que as grandes companhias lutam continuamente contra o engessamento e burocratização de seus mecanismos de gestão e processos decisórios. Mas nem sempre – ou quase nunca – conseguem. Uma vez no topo, suas estratégias alternam de uma posição ofensiva, de liderança tecnológica, para uma postura defensiva, de manutenção da posição de mercado. Isso ocorre trocando-se o risco da experimentação do novo pela segurança dos processos já estabilizados.
A intensidade da inovação, nesses casos, é administrada na medida justa do necessário para a garantia do desempenho superior. Nesse momento, as empresas passam a ser centradas nos resultados, e nisso Google não é diferente de outras da economia da informação, onde a disputa pela manutenção de padrões vencedores empurra o capitalismo de volta para modelos monopolistas de organização de mercados, deslocando a concorrência cada vez mais rala para o plano promissor das startups, que, exceções à parte, logo serão adquiridas pelos incumbentes supercapitalizados.
A despeito da decisão que ao final venha a tomar, a postura de Google traz onboard uma questão maior, que remete à ideia original da coluna: a opção pelo trabalho híbrido. Essa possibilidade está presente na nova política da empresa. Apenas propõe uma precificação diferente, inusitada, para o valor da força de trabalho. Por incrível que pareça, Google ressuscita o velho conflito entre capital e trabalho do século 19 nas empresas de serviços tecnologicamente avançados.
Ao reduzir salários, Google não apenas não disfarça esse propósito, como escancara o interesse de se apropriar de parte extra do esforço produtivo dos empregados (transferindo para eles o custo da estruturação e manutenção do ambiente de trabalho), ao mesmo tempo em que também se apropria integralmente da redução dos seus próprios custos. (Antigamente isso tinha nome: extração bruta de mais-valia. Mas deixa pra lá…).
A apreciação do caso Google aqui nesse pequeno espaço é menos por ele em si e suas consequências para o trabalho no universo das empresas de tecnologia do que pelos impactos nos ambientes físicos de criação de riqueza. O escritório está para a economia de serviços assim como a fábrica para a economia industrial clássica. Aí veio a pandemia, o uso intensivo de plataformas de cloud meeting, experiências de trabalho remoto em escala, novas métricas de eficiência produtiva e, sobretudo, uma nova consciência quanto a possíveis arranjos alternativos de trabalho.
Qual seria o novo locus de trabalho da economia de serviços modernos no mundo pós-pandemia? Vamos ter que voltar ao tema na próxima coluna.
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