Elas são quase 26 milhões no país, mas a sociedade e o capacitismo definem estereótipos que limitam mais que a própria deficiência.
por Fernanda Lagoeiro da AzMina em 06/04/22 14:24
Mulheres com deficiência encaram preconceitos no dia a dia social. Foto: Reprodução (AzMina)
“Anjinho”, “fofinha”, “coitadinha”. Você provavelmente já ouviu essas palavras quando era criança, acompanhadas de um tom de voz infantil. Mulheres com deficiência segue ouvindo isso mesmo depois que se tornam adultas. Mas essa infantilização vai além, atravessa relacionamentos, trabalho e maternidade, tornando-se também violência sexual.
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Mesmo sendo 25,8 milhões de mulheres com deficiência no país, ou quase 14% da população (de acordo com dados do último censo do IBGE), elas ainda encaram diversos estereótipos: se sentem inferiorizadas, preteridas, solitárias e, principalmente, infantilizadas. Têm que provar a todo tempo seus valores e suas habilidades; deixar claros seus desejos e angústias; buscar por amores muitas vezes não correspondidos, ou carregados de preconceitos. Lutam dia a dia por um espaço que não lhes é dado, e estão cansadas.
Há uma estimativa de que 40% a 68% das mulheres com deficiência sofrerão violência sexual antes dos 18 anos, conforme um estudo do Fundo de Populações da Nações Unidas (UNFPA). Inclusive, das sete mulheres entrevistadas para essa matéria, seis relataram já ter sofrido assédio ou abuso sexual.
As estatísticas mostram apenas a ponta do iceberg: o estereótipo infantil faz com que essas mulheres sejam abusadas, assim como as crianças também são, além de serem por (muitas) vezes fetichizadas. Curiosamente, a palavra “infantil” vem do latim infantia, ou seja, “pessoa que não é capaz de falar”. No caso das mulheres com deficiência, isso perpetua o estigma da incapacidade e gera uma relação de dominância extremamente problemática.
Esse tipo de “hierarquização” acontece também nos relacionamentos amorosos. Entre heterossexuais, o homem é, muitas vezes, visto como “dominante”, necessário para cuidar dessa mulher e ajudá-la a ter poder de decisão.
Como consequência dessa dominação, a dinâmica dessas relações é normalmente marcada por muita insegurança, solidão e medo. “Melhor não desperdiçar, é difícil achar parceiro”, “você não pode escolher, tem que ficar com quem te quer” – são frases que as mulheres ouvem constantemente.
“Meu último ex-namorado disse que queria terminar comigo porque não iria esperar a minha mãe morrer para ter que cuidar de mim. Foi uma das coisas mais violentas que eu já ouvi na minha vida”, afirmou Fernanda Vicari dos Santos, 40 anos.
“As pessoas enxergam os nossos companheiros como muito benevolentes ou até mesmo como cuidadores”, disse Fernanda. Ela é mulher preta, pobre e periférica e possui distrofia muscular, uma doença degenerativa progressiva, que a faz usar cadeira de rodas há 10 anos.
“Elas são sempre colocadas numa posição de coitadas ou como exemplos de superação, que as mantêm à margem da sociedade”, explicou a psicóloga Névia Rocha, especialista em gênero e com experiência em atendimento à mulher com deficiência.
A pesquisadora Valeska Zanello usa um conceito chamado “prateleira amorosa” para explicar a tendência que temos de pegar o que está mais fácil na prateleira – e, no caso do amor, as posições alcançáveis são de pessoas padrões, brancas, magras, olhos claros etc. E as mulheres com deficiência se sentem sempre ao fundo da prateleira, em que é preciso pegar uma escada para alcançar.
Bárbara Manzano, 28 anos, é jornalista e possui Diplegia Espástica, uma deficiência motora leve que afeta o equilíbrio, e foi causada por uma lesão neurológica logo após seu nascimento prematuro, com seis meses e meio. Por conta disso, ela utiliza um andador, carinhosamente batizado de “Babi Móvel”. Bárbara já sofreu violência doméstica do pai e teve um relacionamento amoroso abusivo de quase dois anos. “Descobri que ele zombava da minha deficiência para os amigos”, contou.
Dentre os estereótipos mais comuns, ela conta que já se sentiu infantilizada e foi chamada de “anjinho”. Apesar de ser muito comunicativa e se relacionar com muitas pessoas, Bárbara confessa que sua vida amorosa sempre foi difícil. “Muitas mulheres com deficiência vivem em um isolamento social e se sentem sozinhas, como eu me sinto.”
Recentemente, Bárbara se rendeu aos aplicativos de relacionamento. Conheceu um rapaz com o qual conversou e que a elogiou muito, mas quando ela contou sobre a sua deficiência, a bloqueou. “Eu não esperava. E isso me fez questionar todas as minhas relações anteriores.”
No churrasco de família, quando todas as mulheres casadas são questionadas sobre maternidade, a mulher com deficiência nem sequer entra na pauta da conversa. Aí entra outro estereótipo da infantilização: o de que essas mulheres não podem ser mães, de que não são capazes de suportar uma gestação fisicamente, e nem de cuidar de uma criança. Ou ainda, aquele pensamento automático de que a criança vai nascer com a mesma deficiência.
“Parentes muito próximos falaram na minha cara que, por eu já precisar de cuidador, seria um ‘peso’ para as pessoas ao meu redor se eu tivesse um filho e precisasse de ajuda para cuidar da criança também”, recordou Ana Raquel Périco Mangili, 27 anos, servidora pública que tem deficiências múltiplas – Distonia Generalizada e Deficiência Auditiva bilateral severa.
Hoje ela não tem vontade de ser mãe, e considera que o ambiente em que cresceu moldou esse desejo. E não é para menos! Como considerar a maternidade em meio a tantos julgamentos e falta de estrutura?
Até a medicina e o sistema de saúde têm a sua parcela de culpa. Das 606 maternidades públicas do Brasil, nenhuma está adaptada para gestantes e puérperas com deficiência visual, e menos de 8% estão adaptadas para mulheres com deficiência auditiva, mostrou um estudo feito no ano passado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Universidade Federal do Maranhão.
O capacitismo e a infantilização trazem a ideia de que essas mulheres são inaptas para liderar. A psicóloga Névia aponta que o pensamento é errado é de “se elas não conseguiram cuidar nem de si mesmas, logo também não seriam capazes de tomar decisões ou se impor.”
É muito comum que as pessoas com deficiência estejam em cargos administrativos, normalmente sem perspectivas de crescimento. E a relação de desigualdade de gênero se mantém: apenas 36% dos trabalhadores com deficiência que possuem vínculos formais são mulheres, segundo a Relação Anual de Informações Sociais de 2017, do Ministério do Trabalho e Emprego.
Heloísa Rocha, 37 anos, é jornalista e trabalha há 13 anos na Rádio Gazeta. Ela possui osteogênese imperfeita, popularmente conhecida como “ossos de vidro”, em grau 3 – um dos mais graves. Por conta disso, utiliza cadeira de rodas. Também tem baixa estatura, escoliose, os membros superiores são curvos e ela teve fraturas no útero da mãe.
Heloísa faz questão de deixar bem claro os seus privilégios como mulher branca e de boas condições financeiras, que teve acesso à educação e recursos.
A maior dificuldade dela enquanto mulher com deficiência foi no trabalho. “Tive que correr muito atrás das oportunidades”, falou. Conheceu o seu atual chefe quando cursava mestrado, foi escalada para fazer uma reportagem para a rádio e depois foi ganhando mais espaço. Heloísa também é modelo e usa seu perfil no Instagram para falar de moda e inclusão.
Com a pandemia da Covid-19, o cenário no mercado de trabalho piorou. Em São Paulo, a taxa de pessoas com deficiência demitidas, em 2020, foi duas vezes maior do que a de pessoas sem deficiência, de acordo com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
A servidora Ana Mangili que o diga: “Minha principal forma de comunicação é através de leitura labial. Como vou fazer leitura labial para entender os outros se todos estão utilizando máscaras?” Passou a depender de um acompanhante para sair de casa.
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