Home Office imposto pela pandemia de Covid-19 trouxe encantos que escondem os desafios das relações pessoais de um casal
por Luiz Kignel em 18/12/20 15:15
Se confirmada a notícia mais aguardada destes últimos dez longos meses – que para muitos pareceu uma eternidade que teimava não acabar –a vacina eficaz contra a Covid-19 trará a esperança de retomada da normalidade. Conforme a expectativa de cada indivíduo, o isolamento social trouxe experiências que para alguns (conforme a perspectiva, mais poucos do que muitos) se tornaram até desejáveis. No entanto, home office, reuniões virtuais, o denominado novo normal, trouxeram encantos que escondem os desafios das relações pessoais de um casal.
Entre os deveres dos cônjuges, o inciso II do artigo 1.566 do Código Civil (em vigor desde janeiro de 2.003) institui a “vida em comum, no domicílio conjugal”. Essa regra não é nova e copia disposição idêntica que já se encontrava no inciso I do artigo 231 do Código Civil anterior, promulgado em janeiro de 1.916. Portanto, há mais de século, o ordenamento jurídico determinou – e a sociedade acatou – a vida em comum no domicílio conjugal. Mas a verdade é que a vida em comum desenhada pela lei civil certamente considerava entradas e saídas, idas e vindas, ainda que todas tenham como endereço certo o mesmo domicílio conjugal. Ir ao trabalho, levar os filhos na escola, passear com amigos, fazer esportes, a vida em comum imaginada pelo legislador certamente não considerou a vida ininterrupta, imutável e confinada no domicílio conjugal.
Ainda que se manifeste como uma célula única o casal – no singular – representa a manifestação plural de duas pessoas, o que não significa uma única opinião, mas sim a convergência de convicções, crenças e valores que formam um todo que jamais alcançariam sozinhas estabelecendo uma comunhão de vida pautada pela igualdade de direitos e deveres que formam um resultado melhor do que o ser individual. Sem prejuízo de tudo isto, os casados mantêm a necessidade de seu espaço próprio, um tempo necessário e salutar até para a vida a dois.
Esse espaço próprio esvaiu-se nestes últimos dez meses. Convívio diário não significava convívio ininterrupto e uma dinâmica nova foi imposta na relação conjugal. Houve casais que souberam recriar seu espaço próprio dentro do confinamento, outros que se reinventaram na relação a dois. Mas como nem todos finais são felizes, para alguns o casamento indissolúvel acabou contaminado pela Covid-19 e o divórcio se impôs na vida do casal.
No exercício da advocacia de Família somos demandados a acompanhar a dissolução de casamentos (e, estenda-se, também uniões estáveis) pelas mais diversas razões, mas que no mais das vezes acaba impulsionada exatamente pela reclamada falta de convívio. Em algum momento aquele clique mágico se foi e a ausência é tão mais presente no casal – triste ironia – que não há mais razão a sustentar a vida a dois. Após mais de três décadas atuando como advogado de Família recebo de meus clientes um novo desafio: os casamentos não mais se dissolvem pela falta, mas sim pelo excesso de convívio! Porque da promessa de casamento até que a morte nos separe existe uma vida inteira para estarmos juntos sem perdermos nossa individualidade. E aí, de repente, nos vemos surpreendidos e convocados a renunciar ao nosso espaço próprio, trancá-lo em um baú e jogar a chave fora por tempo indeterminado porque o convívio será ininterrupto e constante.
Se essa questão incomodou casais que moram juntos, verdade também é que permitiu questionamentos aos que ainda pretendem se casar ou simplesmente se juntar. Olhando de fora para quem já está dentro se perguntam se é isso que realmente querem para si. A cada divórcio por excesso de convívio disparamos uma dúvida aos jovens casais que estão se permitindo repensar o que realmente é a vida a dois e o sonho do estarmos colados e juntos o tempo inteiro…. Será que o instituto do casamento ou simplesmente da vida sob o mesmo teto encontrou sua fadiga na sociedade? Melhor seriam as relações sem tanto compromisso e entrega recíproca deixando uma válvula de escape para o espaço próprio?
Essas e outras questões certamente serão um prato cheio para a filosofia das relações familiares. Com certeza muitos livros serão escritos, seminários apresentados e teses construídas para tentarmos entender o que realmente se passou na sociedade no enfrentamento da COVID 19. Mas isso demanda tempo, muito tempo. Até lá, o que responder aos jovens casais que se questionam antes mesmo de formalizar uma relação na inesperada pergunta se querem assumir o risco do excesso de convívio?
Enquanto os teóricos não apresentam soluções para as salas de aula, as aulas da vida exigem do advogado de família se posicionar para trazer luz aos casais que estão com a lâmpada queimada em uma sala por vezes sem janela.
Para mim, excesso de convívio não se opõe ao espaço próprio. Muito pelo contrário, deveria ser uma abertura para o exercício da cumplicidade, essa sim privativa dos casais. E talvez a COVID 19 tenha sido uma oportunidade de os casais redescobrirem o que os levaram a escolher um ao outro. Cumplicidade tem vários sinônimos. Pode ser companheirismo e intimidade, mas também conivência e coparticipação. Mas acima de tudo, em tempos de pandemia, cumplicidade deveria ser o sinônimo de tolerância.
O novo normal trará boas lições, mas não será uma realidade definitiva. A vacina vai chegar e a vida a dois seguirá como base da família. E aqueles casais que se tornaram realmente cúmplices terão vencido o vírus da indiferença que vacina alguma conseguirá resolver.
Luiz Kignel é sócio do PLKC Advogados
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