Jurisprudência afirma que empregador deve zelar pela saúde e integridade física dos funcionários. Especialista da área trabalhista configura recusa à imunização como “prerrogativa para rescindir o contrato”
por Vitor Hugo Gonçalves em 10/09/21 17:12
Com o avanço do Plano Nacional de Imunização (PNI) no Brasil, diversas empresas e setores comerciais, remanejadas para o modelo híbrido ou de home office integral desde o primeiro semestre de 2020, estão retomando as atividades e operações presenciais. Ainda que a vacinação seja, comprovadamente, o recurso mais eficiente de se proteger contra a covid-19, o crescimento de um discurso antivacina, fomentado por posicionamentos político-ideológicos e religiosos, está pressionando o universo corporativo a assumir diretrizes capazes de garantir um ambiente coletivo seguro, protegido da disseminação do vírus.
Em julho deste ano, a senadora Nilda Gondim (MDB-PB) protocolou e encaminhou ao Senado Federal o Projeto de Lei número 2.439/2021 (PL 2439), que objetiva a alteração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), acrescentando a alínea ‘n’ ao artigo 482, para dispor sobre a dispensa por justa causa do empregado que se recusar, injustificadamente, a receber “imunização necessária, mediante vacina, disponível gratuitamente na rede pública de saúde ou fornecida, sem ônus, pelos empregadores ou seus planos de saúde, contra doenças endêmicas, epidêmicas ou pandêmicas”.
De acordo com a senadora, o projeto se fundamenta na incontestável necessidade de proteção do ambiente profissional contra a circulação e propagação de doenças. “Essa é uma das grandes lições que irá nos deixar a pandemia de coronavírus. Mas, além disso, precisamos acompanhar as endemias, que estão associadas à presença regular de uma doença em regiões específicas; as epidemias, que estão relacionadas com o aumento expressivo do contágio de uma doença em diversas regiões, e as pandemias, que ocorrem quando a doença atinge proporções mundiais”, esclarece Gondim.
Companhias de relevância mundial, em tentativa de influir sobre a metodologia administrativa de outras empresas, estão investindo em ações que fomentem, direta ou indiretamente, a imunização em massa de seus funcionários. A gigante estadunidense da tecnologia Microsoft, que prevê a reabertura dos escritórios em outubro, já anunciou que, para permitir a entrada de todos os empregados e visitantes nas instalações, vai exigir o comprovante de vacinação de todos os empregados e visitantes. Em confluência com essa conduta, Facebook e Google também informaram, no início de agosto, que os colaboradores que optarem pelo retorno presencial deverão estar completamente imunizados.
Em âmbito nacional, no final de julho, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP) manteve a justa causa aplicada à demissão de uma auxiliar de limpeza em São Caetano que preferiu não se imunizar. A mulher alegou que a recusa em se vacinar não pode ser considerada um ato de indisciplina ou insubordinação. Em resposta à ação trabalhista, na qual a auxiliar solicitou a conversão da pena para dispensa injusta e o pagamento de verbas rescisórias, o desembargador relator, Roberto Barros da Silva, ressaltou que “considerando a gravidade e a amplitude da pandemia, resta patente que se revelou inadequada a recusa da empregada que trabalha em ambiente hospitalar, em se submeter ao protocolo de vacinação previsto em norma nacional de imunização, sobretudo se considerarmos que o imunizante disponibilizado de forma gratuita pelo Governo, foi devidamente aprovado pelo respectivo órgão regulador (Anvisa)”.
Por fim, em concordância com o parecer da 2ª Vara do Trabalho de São Caetano do Sul, o TRT declarou que, frente a não apresentação de nenhum motivo legítimo para a recusa de se vacinar, a demissão por justa causa não foi abusiva ou descabida, mas sim legítima e regular.
Nesse mesmo entendimento jurídico, em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que estados, Distrito Federal e municípios possuem completa autonomia para estabelecer regras referentes à imunização, sobretudo no que diz respeito à condução de servidores públicos. Entre os principais tópicos, ficou decidido que a vacinação obrigatória não sugere uma ação forçada, tendo em vista que sanções podem ser estabelecidas contra aqueles que optarem por não se imunizar.
Jorge Gonzaga Matsumoto, sócio do escritório Bichara Advogados, especialista na área trabalhista, explica que, a princípio, caso um empregado se recuse a tomar a vacina, a demissão por justa causa pode ser praticada sem consequências legais para o empregador.
O raciocínio por trás dessa lógica é coerente: “O indivíduo tem duas facetas: ele pode ser um empregado, inserido em uma estrutura, ou ele pode ser autônomo, prestador de serviços… O cidadão que não está inserido numa estrutura em que ele deva satisfação para um empregador, ele tem o direito privado de se recusar a tomar a vacina, seja por convicção religiosa, científica ou política; ele tem essa discricionariedade”, exemplifica Matsumoto.
“O governo brasileiro não pode obrigar o cidadão, assim como em qualquer lugar do mundo, a tomar a vacina. Ele não pode obrigar diretamente, baixar uma lei, uma norma obrigando, porque isso feriria a liberdade individual; entretanto, por meios indiretos, ele pode forçar o cidadão a se vacinar, exigindo, por exemplo, a carteirinha para permitir o acesso a locais públicos. Essa situação é referente ao indivíduo como cidadão”, complementa.
No entanto, quando nos referimos ao status de empregado, firmado por meio de um contrato empregatício, a jurisprudência que cinge a pauta contempla um outro plano de obrigações, decorrentes do próprio poder fiscalizatório e de monitoramento que o empregador possui. O advogado ressalta que a “Constituição Federal diz que as empresas são obrigadas a zelar pela saúde e integridade física dos seus empregados, uma obrigação empresarial de zelar pelo coletivo, uma vez que a empresa responde para o Judiciário caso ela seja negligente, omissa ou tiver imperícia em relação às atitudes e deveres que ela tem com os empregados, principalmente naquilo que tangencia a segurança e medicina no trabalho”.
Havendo um encargo explícito de proteger o conjunto de colaboradores que fazem parte de determinada instituição, é previsível que o ordenamento jurídico forneça os instrumentos e meios necessários para que essa obrigação seja plenamente cumprida. É justamente em razão desse compromisso sanitário que uma empresa “pode fazer uso de seu poder diretivo para proteger o coletivo”. Essa proteção, então, estende-se à exigência de que os funcionários tomem a vacina contra a covid, uma vez que esses empregados se deslocam até o estabelecimento onde trabalham e podem, assim, colocar a vida de terceiros em risco. “Não fazendo, a empresa pode usar sua prerrogativa de rescindir o contrato por justa causa”, atesta Matsumoto.
O empenho é prático: “A demissão por justa causa é algo que o empregador pode fazer de pior com o empregado, porque ele termina o vínculo empregatício sem dar nenhum tipo de indenização, além de levar o cidadão ao estágio de desemprego. Obviamente, quando falamos da pior medida, ela não pode ser utilizada de uma maneira ordinária, banal, em todas e quaisquer situações. É por isso que na justa causa vigora o princípio de gradação de penas – segue-se uma certa liturgia, sendo a penalidade proporcional ao dano ocasionado: um empregador, por exemplo, não tem a autorização de aplicar uma justa causa para um funcionário que chegou atrasado, porque a falta não tem a mesma proporcionalidade que a falta cometida. Primeiro, deve-se registrar uma advertência; segundo, uma suspensão; terceiro, e havendo três motivos distintos, a rescisão. Isso com base na razoabilidade e bom-senso.”
O sócio da Bichara Advogados exemplifica, como contramedida, um caso de roubo, amplamente capaz de configurar a justa causa. “É um pretexto que autoriza a demissão por justa causa, pois configura uma ação de quebra de fidúcia entre o empregador e empregado – eu não preciso esperar que ele me roube mais uma, duas vezes…”.
Contudo, em episódios que envolvem a covid e a vacinação, é preciso realizar uma análise específica, já que se trata de uma questão pandêmica. “Dependendo do número de pessoas que o trabalhador tem contato e o nível de exposição que ele acarreta frente aos demais, pode ser interpretado como uma justificativa imediata para a justa causa. Caso a empresa deseje ser conservadora, ela pode começar pedindo o atestado, solicitando a vacinação e seguindo o roteiro clássico da justa causa… Tudo vai depender do caso”, finaliza Matsumoto.
Sócio da área trabalhista do Bichara Advogados, Doutor e Mestre em Direito Internacional do Trabalho pela USP, além de Mestre em Comércio Internacional pela Faculdade FIA. Jorge também é professor em cursos de LL.M e pós-graduação do Insper e da FADUSP, além de membro da comissão especial de Direito Internacional do Trabalho da OAB-SP.
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