A Câmara é um órgão colegiado, mas o seu presidente tem o poder de, sozinho, decidir se admite ou não que as petições relatando crimes de responsabilidade serão apreciadas pelas comissões pertinentes e pelo Plenário
por Kim Kataguiri em 16/09/21 19:38
Por duas vezes, o povo brasileiro foi às urnas e decidiu que o Brasil deveria se organizar por meio do sistema presidencialista, repudiando o parlamentarismo que vigeu entre nós no Segundo Reinado e durante o conturbado governo de João Goulart nas suas formas republicana e monárquica, respectivamente.
A decisão popular é legítima – afinal, todo povo tem direito de se autodeterminar – mas lamentável. O presidencialismo é um sistema republicano marcado pelo exercício da chefia de governo e do Estado pela mesma pessoa, que é eleita de forma autônoma em relação ao Poder Legislativo.
Nos Estados Unidos, o sistema teve início no fim do Século XVIII, quando da promulgação da atual Constituição, que adotou um modelo rígido de tripartição de poderes baseado nas teorias do filósofo Montesquieu, cujas ideias não haviam sido implementadas na Europa. O Congresso teria duas Casas, uma de representação popular, eleita pelo povo de cada Estado, e uma de representação dos Estados, cujos membros (os senadores) seriam eleitos pelas assembleias estaduais.
O presidente da República, por sua vez, seria eleito por um colégio eleitoral e, somente se este colégio não lograsse eleger um nome por maioria absoluta, a incumbência da eleição presidencial passaria ao Congresso.
Tal sistema trazia riscos. Se o presidente não era eleito pelo Congresso, também não poderia ser por ele livremente destituído. A Constituição dava ao presidente um mandato fixo de quatro anos, mas o Congresso não poderia simplesmente entender que o governo não estava sendo satisfatório e removê-lo.
O presidente poderia continuar um governo que a maioria do Congresso considerasse desastrosa e o fato do Congresso negar apoio parlamentar ao presidente não teria o condão de derrubar o governo, tal e qual ocorre nos regimes parlamentaristas. Isto poderia causar uma paralisa administrativa, decorrente do impasse entre governo e Congresso.
Algo pior, porém, poderia ocorrer: o presidente poderia incorrer não só em incompetência administrativa, mas em crimes ou outros atos graves. Para estes casos, a Constituição previu que o Congresso poderia julgá-lo, devendo a Câmara autorizar o julgamento e o Senado se converter em um tribunal de júri, presidido pelo chefe da Suprema Corte.
Como o julgamento seria feito por um órgão alheio ao Judiciário e como o crime seria de natureza política, a pena também seria política: o presidente ficaria afastado do cargo e inabilitado para concorrer novamente. Os constituintes americanos buscaram inspiração em antigas leis constitucionais inglesas do Século XIV, que davam ao Parlamento o direito de fazer o impeachment dos ministros do rei.
Completava-se, assim, o ciclo dos freios e contrapesos. Os Poderes são independentes, mas um controla o outro. Ao Poder Legislativo cabe o controle da legalidade dos atos do Executivo e, em último caso, o presidente pode ser julgado por crimes políticos.
No Brasil, adotamos um sistema similar. Temos um rol de “crimes de responsabilidade”, que só podem ser cometidos por detentores de cargos relevantes. Algumas destas infrações são julgadas pelo Poder Judiciário, mas, no caso do presidente, adotamos um sistema bem americano: a Câmara autoriza o julgamento e o Senado julga, sob a presidência do ministro que preside o STF. A autorização e a condenação requerem quórum de dois terços, suficiente para garantir que uma maioria eventual não se volte contra o presidente de forma casuística. Em caso de crime comum, o presidente é julgado pelo STF, mas só depois de autorização da Câmara.
Tudo muito certo e balanceado, mas há um detalhe (no Brasil, sempre há detalhes que pioram tudo…). A Câmara é um órgão colegiado, mas o seu presidente tem o poder de, sozinho, decidir se admite ou não que as petições relatando crimes de responsabilidade serão apreciadas pelas comissões pertinentes e pelo Plenário.
O presidente da Câmara pode admitir ou negar uma denúncia, mas pode também optar por não decidir. Se assim fizer – se optar pela omissão – nada acontece. Milhares de petições fartas de provas de crimes de responsabilidade podem chegar e, mesmo se os 512 colegas do presidente quiserem proceder com o impeachment, nada ocorrerá.
Na prática, há uma submissão dos órgãos colegiados da Câmara à vontade do presidente. Ocorre que a Câmara, conforme dito, é órgão colegiado e ao seu presidente cabe apenas a chefia administrativa e a coordenação dos trabalhos. O presidente não é superior aos demais deputados e não guarda com eles ascendência hierárquica; é, no máximo, um primus inter pares.
O presidente da Câmara torna-se, assim, uma autoridade poderosíssima, que pode decidir se e quando um impeachment será levado adiante. Com isso, vira fiador do mandato presidencial, detendo enorme influência junto ao presidente e à base governista na Câmara, que se sentirá obrigado a apoiá-lo.
É uma distorção bastante séria. O lado bom é que para consertá-la sequer é necessária uma emenda à Constituição; basta uma mudança na lei de crime de responsabilidade e no regimento interno da Câmara. Entendo que o STF também pode, por meio de mandado de injunção – ação judicial que visa suprir lacunas legislativas, dando efetividade a direitos – criar norma que dê prazo ao presidente da Câmara para apreciar os pedidos de impeachment.
O mandado de injunção é uma das poucas ações em que o Judiciário pode criar enunciado normativo, que subsiste até que o Poder Legislativo faça o seu trabalho e legisle. Como a própria Constituição autoriza que, no caso de uma excepcional omissão legislativa, que comprometa o exercício de direitos, o STF resolva o caso concreto por meio do mandado de injunção, não há que se falar em ativismo judicial, que é uma prática autoritária e lamentável que ocorre quando o Judiciário invade seara dos outros Poderes.
Esta mudança precisa ser feita o quanto antes. Sem isso, o sistema presidencialista fica capenga e os freios e contrapesos dos quais ele depende se tornam inócuos.
Kim Kataguiri é deputado federal, eleito pelo DEM de São Paulo
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