Além dos aspectos discursivos, há questões sociopolíticas, comportamentais e educacionais que tornam uma teoria da conspiração tão atraente. Até mesmo para quem busca comprovar antes de curtir ou compartilhar.
por Karen Gimenez em 22/07/22 13:37
Eu tenho. Você tem. Nossas mães têm. Nossos amigos também. Cada um tem a sua teoria da conspiração preferida. Aquela história que parece mal contada… que desconfiamos da versão oficial. Até porque conspirações existem e muitas levam anos até serem descobertas. Então, o que difere as conspirações reais das tais teorias da conspiração cada vez mais propagadas nas redes sociais? A diferença à primeira vista é sutil, mas coloca um limite importante em uma trincheira altamente perigosa. De maneira bastante simples podemos dizer que conspirações se resumem a dados e fatos emaranhados de forma complexa, descobertos a partir da conclusão de investigações, enquanto as teorias da conspiração são articulações criadas a partir da inclusão forçada de elementos fantasiosos em algo que é real.
As teorias da conspiração partem de algo real, o que ajuda a confundir tanta gente e acaba até mesmo enganando quem é bem-informado. Um acontecimento que pode ser comprovado ganha “acessórios” que, se olhados de maneira lógica, jamais se conectariam, mas que resultam em um emaranhado complexo e cheio de mistério. E por isso tão atrativo
O que faz tanta gente acreditar nas teorias da conspiração foi a pergunta que busquei responder ao longo do meu Mestrado, quando estudei o movimento terraplanista. Sim, eu fiquei dois anos consumindo (e analisando, claro) conteúdo terraplanista (imaginem o estrago que o algoritmo do Google fez na minha vida digital com isso…). A ideia inicial era estudar a estrutura discursiva das teorias da conspiração negacionistas da ciência (sim, há uma arquitetura específica das palavras para persuadir os incautos) mas, com o passar do tempo, a pesquisa foi além. Não dá para olhar essa estrutura do discurso sem entender o grande ecossistema ao redor dele. Eu poderia falar sobre o passo a passo de como se organizar um texto conspiratório, mas não é só isso que faz as teorias da conspiração terem tanto sucesso.
Além dos aspectos discursivos, há questões sociopolíticas, comportamentais e educacionais que tornam uma teoria da conspiração tão atraente. Até mesmo para quem busca comprovar antes de curtir ou compartilhar. A diferença é que pensamos dois minutos no que está ali, sentimos uma certa atração, depois colocamos o assunto de lado e tocamos a vida. Enquanto tem gente que vive em função das teorias da conspiração. Dentre os terraplanistas, por exemplo, há até uma economia paralela, como o próprio documentário A Terra é Plana, da Netflix, mostra. Algo como terraplanista compra de terraplanista.
Dos mais de 50 elementos que levantei ao longo da pesquisa que podem compor um ecossistema conspiracionista, trago aqui quatro deles dentre os que considero muito relevantes para entendermos o contexto atual. Hoje não vou falar sobre o discurso em si, mas sobre o ambiente que propicia a aceitação de teorias conspiratórias, a partir dos estudos do psicólogo holandês Jan-Willen Von Prooijen e do semioticista Umberto Eco, mais conhecido no Brasil por seus romances do que por seus estudos acadêmicos.
Um dos elementos comportamentais mais fortes que leva muita gente a acreditar numa teoria conspiratória é o desejo de pertencimento. A necessidade ardente de fazer parte de um grupo, de criar vínculos que pareçam indestrutíveis, de se sentir envolvido em algo importante é uma porta de entrada para as teorias da conspiração. Isso porque, tais teorias são formadas por narrativas cheias de segredos que aqueles que se deixam seduzir por elas são induzidos a tentar descobrir. E para isso se unem criado fortes elos. É quase como um videogame em que o time se junta para tentar vencer a próxima etapa. E a próxima. E a próxima. E a próxima, sempre em busca de um segredo que nunca tem fim. Quanto mais se “joga”, mais se quer jogar. Quanto mais se joga, maior é a sensação de fazer parte de algo importante, de se sentir incluído. E o vínculo criado com o grupo conspiratório ajuda no isolamento social, pois ninguém fora do grupo o entende mais. Nasce aí o medo de discordar, de questionar e, com isso, ser expulso, ser jogado novamente no mundo real. Algo semelhante ao visto em seitas religiosas. Aqui, inclusive, ouso arriscar que o conteúdo não importa. Pode ser terraplanismo, antivacina, globalismo, ou o que for. Até mesmo porque acompanhado grupos conspiracionistas ao longo de mais de dois anos, notei que o que menos importa ali é o assunto sobre o qual se está falando, ou melhor, conspirando.
A transferência de responsabilidade – olhar para a própria vida e compreender tanto o contexto geral quanto a nossa quota de responsabilidade sobre os prejuízos que tivemos não é fácil para muita gente. É importante ressaltar que não estou falando da população vulnerável que sofre com desgovernos e tantas injustiças sociais. Foco da classe média para cima, que foi onde encontrei o maior número de teóricos da conspiração. Porque quem não sabe o que vai ou se vai comer amanhã provavelmente não “tem tempo” para pensar em conspirações.
É bem mais simples, dá menos trabalho e dói muito menos quando achamos alguém em quem colocar a culpa. Os teóricos da conspiração sabem disso. E esse é um outro elemento bastante atrativo nas teorias da conspiração. Afinal estamos em um mundo em que “há perigo em cada esquina”, em que há “muita gente poderosa tramando”. Daí, se algo dá errado, é muito mais fácil mostrar as maldades do globalismo, do Foro de São Paulo, do “fica em casa”, ou seja, lá o que for, do que parar, pensar e entender a conjuntura e qual é a nossa responsabilidade naquilo que não saiu como prevíamos. Ou até considerar que algumas coisas dão errado, simplesmente porque dão errado. A tentadora possibilidade de encontrar alguém a quem culpar e a sensação de alívio que isso traz faz com que a lógica fique em último plano e a teoria da conspiração venha para a superfície.
A necessidade de mostrar inteligência – o psicólogo Von Prooijen (2016-2017) defende fortemente a relação entre baixo nível de escolaridade e atração por teorias da conspiração. Eu acrescentaria a educação de baixa qualidade. A perigosa “educação bancária” cujos riscos foram alertados por Paulo Freire, voltada para o decorar em vez do pensar. Mergulhando nos grupos conspiratórios e analisando o dia a dia pessoas que são suscetíveis a teorias conspiratórias, dá para perceber que a simplificação do discurso promovida pelas teorias da conspiração é atrativa como um imã. Pessoas que, por baixo nível de escolaridade ou por escolaridade de baixa qualidade, sentem-se de alguma maneira inferiores diante da comunidade acadêmica, por exemplo, de especialistas ou de pessoas que se dedicam à leitura, à ciência ou a cultura em todas as suas formas.
As teorias da conspiração, por mais complexas que queriam parecer ser, costumam fazer associações simples, superficiais que fazem com que qualquer pessoa tenha a sensação de que compreendeu algo muito complexo (“se você olha para o mar na beira da praia e vê um horizonte reto, essa é uma prova que a Terra é plana…, olha só como você é esperto”), promovendo uma sensação de “revanche” por parte daquele que nunca se sentiu muito à vontade diante de grupos com pensamento mais crítico. Esse suposto “sentimento de inferioridade”, que também pode ser traduzido por algum tipo de desprezo ou revolta contra as instituições é um pavio curto diante de uma teoria da conspiração.
A concentração de todos os males em um problema único. Para os teóricos da conspiração, todos os problemas do mundo serão resolvidos se as vacinas forem abolidas, quando todas as pessoas se conscientizarem de que a Terra é plana ou quando o globalismo for derrotado. A concentração de todos os males em um problema único é uma maneira de projetar um futuro ideal para quem não consegue suportar um presente que considera catastrófico. Daí a forte emersão de teorias conspiratórias em momentos de instabilidade social, econômica ou política. É confortável – e às vezes um único fio de esperança – pensar que se um determinado inimigo for vencido, a vida passará a ser cor de rosa. É bem parecido com a tão frequente projeção da felicidade futura – vou ser feliz quando me formar, quando mudar de emprego etc. – nesses casos elevada à potência máxima.
Há diversos elementos além desses quatro que propiciam um ambiente conspiratório e eles não costumam agir isoladamente. A crença nas teorias da conspiração é algo que dificilmente será eliminado, mas quando conseguirmos compreender todos os nós desse emaranhado, talvez seja possível evitar que eles continuem se espalhando como um vírus mortal. Sim porque teoria da conspiração também mata.
*Karen Gimenez é mestre em Comunicação, jornalista com pós-graduação em Estratégia Empresarial e geógrafa. É professora de pós-graduação da Universidade Paulista, pesquisadora associada do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão – Escola do Futuro da Universidade de São Paulo; facilitadora convidada do Sebrae-SP e consultora em Comunicação, Gerenciamento de Crises e Programas de Desenvolvimento para empresas e instituições. O conteúdo deste artigo é de cunho pessoal e não representa qualquer posicionamento das instituições para as quais a autora trabalha.
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