Os atos antidemocráticos do último domingo me fizeram novamente pensar nesse paradoxal dilema que me persegue: o de ter orgulho e ao mesmo tempo pesar da nacionalidade que carrego
por Liliana Tinoco Bäckert em 12/01/23 13:33
Golpistas invadindo os Três Poderes no DF (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Os atos antidemocráticos do último domingo me fizeram novamente pensar nesse paradoxal dilema que me persegue: o de ter orgulho e ao mesmo tempo pesar da nacionalidade que carrego. Apesar de fazer questão de me identificar pela minha origem, porque moro fora, confesso que sinto uma certa inveja de cidadãos de outros países, que com certeza têm vida mais fácil.
Se já não nos bastasse os últimos quatro anos, em que dia sim outro também, nos deparávamos com discursos e atos que envergonhariam qualquer um que consegue entender o beabá das regras democráticas, agora precisamos lidar com o medo de terrorismo e a vergonha e tristeza de ver nosso patrimônio histórico depredado.
Mas quem se esqueceu dos meses que antecederam as eleições de 2022, ainda mais tensos? Vimos pessoas morrerem por expressarem sua intenção de voto, tivemos medo de não podermos mais votar. Experenciamos brigas em família, gente que se “amava” deixou de se falar, filho com pai, irmãos.
Um pouco antes disso, testemunhamos a morte de quase 4 mil pessoas por dia devido à Covid 19. Nos enlutamos por entes queridos, por atores que marcaram nossa infância ou nosso imaginário cultural. E antes disso e durante, vivemos sob violência, com medo de sofrer um assalto à mão armada ou sob o risco do desemprego, tudo isso presenciando a volta da fome.
Quando eu morava no Rio de Janeiro, sofria com a instabilidade econômica. A cada crise mundial, lá no México ou na Tailândia, temia perder meu emprego. Antes disso até, convivi ainda bem jovenzinha com a inflação mensal na casa dois dígitos.
Essas são as minhas mais fortes lembranças de ser brasileira de uma família de classe média baixa. É claro que há outros mil motivos de orgulho, mas me concentro hoje no fardo. Você que está no Brasil pode pensar que, para quem mora fora, como eu aqui na Suíça, isso já não faz a menor diferença. Estou em um país onde a economia anda, há segurança, a democracia ainda não corre perigo, a escola gratuita existe. Verdade, disponho disso tudo.
Mas continuo sendo brasileira, sofrendo com as notícias e com as cenas dantescas que daí chegam e ocupam as manchetes mundiais. Os fracassos do nosso país continuam nos afetando aqui no exterior. Tanto psicologicamente, porque assistimos de longe e sofremos por nossas famílias e amigos que ficaram no país, quanto na prática mesmo.
Toda vez que algum fato negativo da proporção que mereça sair em todas as capas de jornal do mundo acontece, nossa imagem enquanto nação é manchada. E a pessoal também. Resta um certo reforço no estereótipo negativo de ser brasileiro. E acreditem, fora do país isso tem um enorme peso.
Aqui no Primeiro Mundo, isso conta contra nós. A começar pelas perguntas que temos que responder. Seguido de comentários do tipo “tanto faz mesmo, porque sempre vai haver problema por lá”.
No campo do subliminar, a confirmação da má imagem é usada, muitas vezes, inconscientemente em objeção a chances de melhor emprego, de credibilidade, de amizades, de crédito até. É o tal do preconceito e do racismo irrefletido que, alimentado por séculos, é realimentado por insucessos de um país que ainda não entrou para o time dos ricos.
Na prática, funciona assim: vamos supor que um brasileiro queira alugar um apartamento e descubra que “há dificuldade por que muitos donos nos consideram porcos, dizem que falamos alto, somos caloteiros”. Aí vê as cenas de domingo, dia 8 de janeiro de 2023, e pensa: “por isso não alugo meu imóvel para essa gente”.
Tem também, essa é comum, a história de que “se não está satisfeito aqui, volta para o seu país”. Nesse discurso, estão implícitos os conceitos “naquele país de bagunça, de corrupção, de pobreza e agora de terrorismo”.
Aliado a isso, ainda pensam que viemos da República de Bananas. Já ouvi algumas vezes por aqui essa expressão. Somos tão grandes em relação aos outros países da América Latina que não nos vemos assim, vulneráveis. Mas a imagem que temos aqui é muito diferente da nossa autoimagem enquanto nação.
Como somos pobres e temos instabilidade de tudo quanto é jeito, incorporamos com frequência o grupo de mão de obra barata aqui no exterior. Isso quer dizer que nossos diplomas muitas vezes serão ignorados, voltaremos muitas casas na hierarquia social, e teremos mais dificuldades de conseguir empregos mais qualificados. E o estereótipo de um povo está conectado à questão.
Há inúmeras teses comprovando esses fatos. Aqui da minha realidade, falo de estudos realizados inclusive por universidade suíças, como as da professora da Universidade de Berna, Yvonne Riaño, por exemplo, que pesquisa as qualificadas imigrantes latino-americanas em terras helvéticas que, por inúmeras razões, inclusive racismo, não conseguem entrar em vagas equivalentes à qualificação.
Para não me estender, menciono também outro estudo, realizado pela Universidade de Lausanne, de Daniel Auer, que desenvolveu uma espécie de fórmula matemática da exclusão do mercado de trabalho, que usa características como a etnia, origem e estereótipos correspondentes para classificar um povo específico.
O reforço do rótulo vem com frequência da própria imprensa, que muitas vezes já traz a nacionalidade no título para mais uma vez reforçar o quão problemáticos são os estrangeiros X no solo deles.
E para quem ainda não se convenceu, acontece até mesmo nas escolas, onde alunos com pais imigrantes têm menos chance de ir para a universidade. E de novo, depende do grupo de estrangeiros.
Ou seja, a gente sai do Brasil, mas ele não sai de dentro da gente. Só nos resta cantar… “sou brasileiro, com muito orgulho…” e torcer para que os ventos mudem.
Liliana Tinoco Bäckert tem mestrado em Comunicação Intercultural pela Universidade de Lugano, é jornalista e mora na Suíça.
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