Semana passada, vi em diversos perfis o lançamento de uma enquete sobre se a tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina, Cristina Kischner teria sido real ou armação.
por Karen Gimenez em 13/09/22 08:44
De uns tempos para cá venho notado, principalmente no twitter – a rede social com a qual mantenho a relação mais ambígua de amor e ódio – um número crescente de enquetes. Enquetes essas com pedidos de opinião relacionadas a assuntos sobre os quais opinião é a última coisa que faria algum sentido. Semana passada, vi em diversos perfis o lançamento de uma enquete sobre se a tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina, Cristina Kischner teria sido real ou armação.
O lançamento de dúvidas sobre acontecimentos semelhantes não é novidade. A facada que atingiu o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018 foi motivo até de um documentário dizendo que ali poderia haver uma armação. Na época do atentado (setembro2018), uma série de postagens alegava uma suposta inveracidade no acontecimento, pela ausência de sangue aos borbotões. As postagens em relação à facada, além de serem mais explicitas sobre uma suposta encenação eram claramente feitas por militantes – robôs ou não – de opositores do atual presidente. Diferentemente das tais “enquetes”, as postagens deixavam claro o que pensava quem postava.
No caso de Cristina e outros mais recentes, vejo uma mudança na estratégia discursiva que pode ser mais perigosa e ter consequências mais graves, pela sutileza com a qual se apresenta. São as supostas postagens isentas, “eu só fiz uma pergunta”. Enquanto a negação da facada no presidente vinha claramente da oposição e de maneira quase sempre explícita – ou ao menos sugerida -, a estratégia de manipulação mais recente se utiliza do próprio interlocutor, daquele que recebe a mensagem, como instrumento do processo manipulatório.
Com a sofisticação do modus operandi, o processo de manipulação se torna mais sutil e, justamente por isso, tende a ser mais eficaz, pois é absorvido de maneira menos perceptível. Afinal, aquele que foi manipulado acredita que formou sua opinião pensando por si só.
Vou tomar aqui novamente como exemplo o caso da vice-presidente da Argentina, mas é possível encontrar essa mesma estratégia de comunicação em outros assuntos tão complexos quanto este. Ao percorrer a timeline do twitter deparei com uma “inocente enquete”: Você acha que o atentado contra a vice-presidente da Argentina foi real ou fake? Votação aberta.
Uma pergunta dessas para a população em geral – que de perita criminal não tem nada – é quase como questionar se é melhor usar liga de aço, alumínio ou titânio para soldar um foguete na atmosfera de Marte. Ou seja, uma pergunta que implica em conhecimento técnico para poder responder, e que a “opinião” aqui de nada vale. Quem investiga e diz se houve ou não uma tentativa real de assassinato e por que motivo – felizmente – não foi bem-sucedida são os peritos da polícia. Gente técnica e preparada para isso.
Seriam então inofensivas tais enquetes nas redes sociais e devemos simplesmente não dar a mínima atenção para a sua existência? Quando olhamos para essas questões sob a óptica da estratégia discursiva e da manipulação, elas não são tão aleatórias. Muito menos inocentes e menos ainda querem saber a “opinião” das pessoas. Essa não é uma estratégia para saber a opinião das pessoas. É para formar a opinião das pessoas.
A hipótese mais inocente que se pode cogitar ao encontrar esse tipo de pergunta lançada ao vento seria uma tentativa de o influenciador não ser “cancelado”. Ele teria sua versão da história, mas quer testar a aceitação de levá-la a público. Pode acontecer, mas tende a ser incomum. A probabilidade maior é que esse que lança a pergunta tem sim uma intenção clara de levar seu interlocutor a uma resposta específica. Ele não quer saber o que o seu interlocutor pensa. Quer incentivá-lo a pensar de determinada maneira.
Voltemos ao caso Cristina Kischner e a pergunta lançada no twitter se o atentado teria sido real ou forjado. Vamos analisar por que essa construção discursiva pode ter mais força no poder de manipulação do que o lançamento de uma suspeita, como foi feito a partir da ausência de sangue no atentado a Bolsonaro.
O elemento fundamental na estratégia discursiva da pergunta supostamente isenta é o empoderamento de quem a responde. Quando uma postagem insinua que há indícios de uma simulação no atentado à Bolsonaro, aquele que profere a mensagem já coloca uma opinião mesmo em forma de suspeita e convida o interlocutor a aderir a ela. Traduzindo, seria algo como: siga-me, eu comando essa narrativa e você me segue. Quando a pergunta é simplesmente lançada como se aquele que posta estivesse em dúvida, a relação de poder se inverte. Quem recebe a mensagem vai dar o tom da conversa ao responder.
Mas e aqueles que respondem que o atentado foi real? Esses não importam para quem faz a pergunta. São os mesmos que não deram atenção às insinuações sobre a falta de sangue na facada. Ou seja, gente que não vai cair no processo manipulatório com facilidade. Não é essa parcela que aquele que lançou a “enquete” está buscando.
A posição de suposta humildade – “eu não sei, estou apenas perguntando” – por parte de quem lança a ideia funciona como um imã para aqueles que facilmente aderem a uma teoria da conspiração. Aquele que responde “foi fake” não percebe que até então havia apenas uma versão da história: o atentado à vice-presidente da Argentina realmente aconteceu e foi devidamente documentado.
Quem criou a “outra possibilidade” foi aquele aparentemente isento que lançou a pergunta. E quem responde acredita que a sua opinião pessoal e leiga tem mais valor do que realmente tem. Que ele pensou por si próprio, pois não lhe foi lançada uma ideia, lhe foi feita apenas uma pergunta. Ele foi consultado e com isso se sente valorizado.
Sentindo-se empoderado – e não manipulado – aquele que responde “foi fake” tem grande possibilidade de levar o assunto para a sua própria rede, assinando em baixo com a sua opinião e isentando aquele que verdadeiramente plantou a ideia, caso haja futuras polêmicas ou desdobramentos. Aquele que lançou a pergunta fica só olhando a “briga” acontecer nos comentários, vendo seu intuito de lançar a teoria da conspiração se concretizar, sem qualquer comprometimento da sua parte.
E por que cada vez mais queremos dar opinião sobre tudo? Estudiosos de diversas áreas apontam as razões. Vamos tratar disso em um outro texto.
*Karen Gimenez é mestre em Comunicação, jornalista com pós-graduação em Estratégia Empresarial e geógrafa. É professora de pós-graduação da Universidade Paulista, pesquisadora associada do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão – Escola do Futuro da Universidade de São Paulo; facilitadora convidada do Sebrae-SP e consultora em Comunicação, Gerenciamento de Crises e Programas de Desenvolvimento. Ativista na luta contra a desinformação, mantém dois perfis nas redes sociais orientando como não cair em fake news ou teorias da conspiração (instagram @ecos.conspiratorios e twitter @conspiratorios) O conteúdo deste artigo é de cunho pessoal e não representa qualquer posicionamento das instituições para as quais a autora trabalha.
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