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Creomar de Souza

O fio e o novelo

Seja à direita ou à esquerda, de tempos em tempos o eleitorado, em um comportamento de manada, parece marchar na direção de alguma figura que se coloca como o instrumento de resolução dos problemas nacionais

por Creomar de Souza em 30/06/21 20:36

O Brasil tem essa propensão atávica a buscar salvadores da Pátria ao longo de sua conturbada história política. É como se buscássemos eternamente uma figura extraordinária, dotada de capacidades únicas, capaz de conduzir a Nação a bom porto. As desilusões em série e as frustrações homéricas, contudo, não foram capazes de desfazer esse mito do líder carismático cujas qualidades excepcionais seriam a nossa chance de redenção. Seja à direita ou à esquerda, de tempos em tempos o eleitorado, em um comportamento de manada, parece marchar na direção de alguma figura que se coloca como o instrumento de resolução dos problemas nacionais. Nada indica que o padrão será rompido no próximo ano.

O atual Presidente da República é também expressão desse fenômeno. Eleito como salvador, com fama de vestal da política, manipulando imagem de impoluto, hoje tem de enfrentar a crise que ameaça desconstruir a figura sobre a qual assentou seu discurso político. Em um roteiro que poderia ser facilmente adaptado por Alexandre Dumas, o Chefe do Executivo parece ter construído em torno de si uma redoma, onde penetram apenas recomendações e conselhos que agradam ao próprio chefe, gerando um afastamento do mundo real, que, no entanto, teima em dar as caras: as mortes evitáveis por Covid-19, a corrupção que ajudam a engrossar as mortes e a falta de rumo das políticas públicas em geral. 

Do lado de fora da torre – uma bastilha de orgulho e vaidade modernista – encontra-se uma nação em ebulição. O Brasil, cantado em verso e prosa como país ordeiro e de pessoas amáveis, encontra-se em uma situação em que os cidadãos não se conhecem e a hostilidade marca cada passo em um caminho que parece encontrar uma catarata seca, afinal são tempos de crise hídrica. E na convergência de tantas crises, sempre surge a pergunta: como viemos parar aqui? Longe de querer esgotar a reflexão, parece que a receita é uma mandala cármica constituída por descrença na regra do jogo, preguiça em construir a melhor resposta possível e transferência de uma responsabilidade coletiva para um ente individual. 

Lembrando de um sucesso literário que busca responder por que algumas nações prosperam e outras fracassam, é possível compreender que o sucesso coletivo não está ancorado em uma liderança iluminada que guia o povo pelo mar revolto. Por mais que de um ponto de vista teológico a alegoria faça sentindo, é importante compreender que, somente quando cada um tem consciência de suas responsabilidades e desafios para com o todo, a representação adquire qualidade. E neste caso específico, o que vemos até aqui em termos de representação é retrato daquilo que vemos nas ruas. 

As autoridades são um reflexo da falta de engajamento da cidadania que, por sua vez, com maior ou menor capacidade, tenta emular o descompromisso de parte considerável dos tomadores de decisão com seus papeis institucionais. Ao fim do dia, com a aproximação de mais um ciclo eleitoral, nos encontramos diante daquele momento em que novamente caminharemos em passos de boiada em direção à porteira dos salvadores da pátria de ocasião. O resultado, provavelmente, já é previsível, porém, diante da nossa incapacidade de fazer autocrítica, seremos dragados pelas fases de encantamento, desilusão e desapego para com a política, num ciclo sem fim que lembra o mito de Sísifo. 

O fato é que, não importando qual seja o governo, a recorrência de escândalos de corrupção ou a repetição da incapacidade da máquina pública de responder eficazmente aos desafios de grandes crises, são apenas o efeito concreto de uma cidadania construída de maneira pouco robusta, da fé exagerada no salvador da Pátria, que terceiriza a responsabilidade de todos. E se há uma saída para esse ciclo vicioso, não há dúvida que passa pelo exercício de responsabilidades individuais e coletivas. Sem isto, seguiremos condenados a viver puxando o fio de um novelo de lã sem saber quando este chegará ao seu fim.

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