Vivemos um momento grave, porém passageiro, ou um divisor de águas que vai liberar novas forças, de impactos ainda desconhecidos?
por Creomar de Souza em 03/02/21 18:46
A escola dos “Annales” na França utiliza a noção da história de longa duração. Em vez de ter um foco numa história de curto prazo, voltada para a descrição de eventos pontuais, a perspectiva de longa duração busca inserir essa sucessão de fatos em movimentos mais amplos de médio e longo prazos, que desvelam forças estruturais, tendências subterrâneas, acomodação de placas tectônicas ao longo de décadas e até séculos.
Este ponto de partida é importante para uma reflexão acerca de como os historiadores do futuro analisarão o período atual de crises múltiplas. Há mais de um século, durante o período da gripe espanhola, milhões morreram, a situação econômica não era brilhante, com muitos países ainda destroçados pela Primeira Guerra Mundial. No entanto, aquele período hoje nos parece pouco dramático. O problema sanitário do passado é quase um soluço passageiro na história do entre guerras, incapaz de retirar a atenção dos historiadores para outros aspectos dramáticos, em particular o legado de tragédias e emoções negativas que ofereceriam terreno fértil para a Segunda Guerra.
Isto leva a duas perguntas: o momento atual será também encarado, daqui a algumas décadas, como um fenômeno grave, porém passageiro? Ou, contrariamente, será considerado um divisor de águas a partir do qual novas forças foram liberadas, com impactos transcendentes no modo como as sociedades se organizam?
Se a primeira hipótese estiver correta, talvez tenhamos de passar pela provação para voltar ao bom e velho normal tal como estávamos acostumados. Nesse caso, a economia não seria reorganizada de maneira significativa e nem as relações de poder entre os países sofreria alteração de monta. Movimentos políticos populistas continuariam negando a ciência, ganhando eleições aqui e acolá, perdendo outras. EUA e China retomariam nas mesmas bases sua competição geoeconômica em busca da liderança mundial.
Entretanto, se a segunda for a correta, é bem possível que o velho normal tenha sido sepultado definitivamente. Como se trata de uma novidade e não a repetição dos padrões de comportamento e de relações de força anteriores, tanto no interior dos países quanto na cena internacional, seria mais difícil saber se a humanidade retirará do trauma as lições que permitam dar a volta por cima. Os estudiosos preocupados com a história de longa duração buscarão identificar as novas tendências inauguradas com a crise, quer no sentido de revalorização da ciência e de políticas públicas pragmáticas, quer no sentido contrário, de um populismo eventualmente revigorado, que se aproveita da distribuição desigual do acesso à saúde para eleger novos bodes expiatórios para sua própria incompetência: o globalismo, o vírus chinês, a ONU.
O mais importante não é qual das hipóteses está correta, mas a certeza de que a história não é teleológica, não flui numa direção pré-determinada. Se queremos que o momento atual seja uma provação que pelo menos sirva para avançar rumo a sociedades mais justas e prósperas, será preciso retirar lições deste período de sofrimento e crise. Evitando o equívoco de aferrar-se, diante de questões complexas, a respostas simplistas que já se provaram equivocadas, como o extremismo que vicejou entre as duas grandes guerras e que hoje reaparece sob novas roupagens, num ensaio de repetição trágica da história.
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