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Bolsonaro: o presidente performático

Bolsonaro interpreta no palco do “cercadinho” o herói revolucionário antissistema, lutador contra as forças do mal. Porém, quando as cortinas se fecham, está ele arrochando com o centrão e fazendo exatamente o que condena em cena

por Vinícius Zacarias em 20/09/21 20:46

Em recente declaração contra as investidas desvairadas, a julgar antidemocráticas, do presidente da República à Suprema Corte, o ministro Gilmar Mendes afirmou que “a fabricação artificial de crises institucionais infrutíferas afasta o país do enfrentamento dos problemas reais. A crise sanitária da pandemia, a inflação galopante e a paralisação das reformas necessárias devem integrar a agenda política”. Nesse sentido, discordo da interpretação síntese que o ministro Gilmar Mendes tentou emitir sobre o governo Bolsonaro e neste texto direi as razões.

Do ponto de vista da ordem institucional, qual a declaração do ministro Gilmar Mendes se refere? As crises geradas pelo Governo são, de fato, infrutíferas. Porém, Bolsonaro não se importa com a responsabilidade estatal, justamente por ser um desorganizador das instâncias institucionais. A única coisa que o interessa é a manutenção vazia de seu próprio poder autocentrado. Além das mentiras utilizadas como modus operandi de gestão, o presidente também se vale da agenda processual de crises para a sua arrojada estratégia eleitoreira-governamental e que quase sempre antecede algum evento antidemocrático.

Apesar de muitos analistas políticos não se aterem ao “poder da performance” no processo decisório nacional, pretendo mostrar brevemente como todas essas condições reunidas acionam a base odiosa radicalizada e ordenam o sentimento deliberado da persistente revolta antissistêmica, o combustível agitador do movimento bolsonarista que o elegeu, contribui para a manutenção do seu governo e ainda poderão produzir efeitos práticos devastadores à política brasileira. Trarei três exemplos a seguir.

Em ocasião de “motociata” promovida pelos bolsonaristas, o presidente mais uma vez distorceu informações, dizendo que pessoas vacinadas não transmitem mais o vírus e também afirmou, com recurso do impreciso, que houve supernotificação nos casos de Covid-19 no país, invocando as informações trazidas no relatório do TCU. No entanto, o relator do processo, o Ministro Benjamin Zymler, desmentiu o presidente veementemente, alegando que não há evidências de supernotificações de dados neste relatório.

A última grande mentira do presidente Bolsonaro, além da carta de moderação democrática redigida pelo Michel Temer logo após os atos de 7 de Setembro e que nada mais é do que parte da manobra “morde e assopra” para melhor gerir a “técnica do caos” que o próprio fomenta, foi a famigerada polêmica criada em torno das urnas eletrônicas, um mecanismo já usado no país há 25 anos e, conforme os TSE e peritos da PF, sem nenhum caso de fraude documentada. O mesmo sistema operante nas sete eleições anteriores de deputado e na única presidencial a que Bolsonaro concorreu e saiu vitorioso. Em live recente realizada em seu Instagram, Bolsonaro não conseguiu comprovar as fraudes e irregularidades nas urnas e tudo não passou de uma grandiosa artimanha conspiratória.

Para ilustrar alguns dos recentes exemplos das mentiras, manipulações, imprecisões, omissões, deturpações e contradições emitidas pelo presidente e membros do seu governo, como uma espécie de “tecnologia da desinformação”, voltemos ao emblemático caso de um suposto livro didático atribuído ao MEC e que seria distribuído nas escolas públicas para “doutrinar” crianças a serem gays (sic), sendo exibido em horário nobre durante entrevista de Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional. Meses após, o TSE confirmou que o “Kit Gay” nunca existiu e pediu a suspensão de links de sites com referência à expressão.

O material do “Kit Gay” foi um dos carros-chefes para propulsão do aparecimento nacional de Bolsonaro dos confins empoeirados da Câmara de Deputados, nos quais atuava há 28 anos. Para Bolsonaro tornar-se conhecido no país, sua tropa usou de rato de laboratório o deputado federal Jean Wyllys, conhecido pela defesa aos Direitos Humanos, o transformando numa espécie de bode expiatório da contramoral e maus costumes.

Esses pequenos exemplos foram elencados para ilustrar uma premissa importante do estilo Bolsonaro de governar: a utilização da mentira como uma tática. Esses incursos mentirosos insuflam sua base fanática e mantêm um teto de popularidade nas pesquisas quinzenais que estão sendo feitas há mais de um ano para as eleições (contém sarcasmo). No entanto, essa estratégia, que não necessariamente precisa ser exclusiva a técnicas de mentiras e conspirações, afinal não estamos falando de um elemento de medida a boas e más práticas, mas sim uma forma-ritual de atingir objetivos, fazem parte de uma metodologia muito importante usada desde quando política é considerada a arte dos interesses: a performance.

Recentemente, em artigo intitulado “Batalhadores do Brasil…”, publicado pela Revista Piauí, Miguel Lago assume um diagnóstico preciso sobre das causas e consequências discursivas que calcificaram a vitória bolsonarista nas urnas. Tendo este como referência e se passarmos a considerar apenas os momentos recentes da história pós-redemocratização, podemos visualizar que o governo Bolsonaro não é um governo, mas sim uma eterna campanha eleitoral. Após a sua vitória em 2018, não reduziu o tom e sempre se utiliza das mentiras, agressividade, retóricas repetitivas e “palanqueiras”.

Sendo assim, Bolsonaro não governa, mas faz campanha para garantir poder puro e seco. Qual agenda orçamentária e fiscal Bolsonaro defende? Já mostrou que não é contra o sistema, à medida que negocia cargos no centrão, recentemente entregando a Casa Civil ao Senador Ciro Nogueira, líder primaz do espectro fisiológico do Congresso Nacional. Também não assume uma agenda neoliberal escancarada, conforme a definida urgência das reformas políticas pós-golpe de 2016, vide os sucessivos freios e desprestígios nas direções orçamentárias e fiscais que ministro Paulo Guedes vem sofrendo. Então, sem governar para ricos ou para pobres e valendo-se da mentira como tática política para as massas, o que resta a Bolsonaro senão uma pecha performática?

A ruptura dos valores democráticos não aconteceu durante essas crises promovidas pelo governo, mas a partir da admissibilidade do registro da candidatura de Bolsonaro, um pré-candidato presidencial com declarações golpistas explícitas e defesa a regimes ditatoriais. O establishment e parte considerável da mídia, desesperados pela saída do PT, elevaram Bolsonaro ao patamar de candidato comum. Com sua vitória nas urnas, sua base entendeu que os sentimentos que o elegeram precisavam manter-se em escalada, pois é o único elemento que sustentara moralmente sua “governança”. Então, as crises criadas e intensificadas através de declarações autoritárias, ataques à impressa, gestos sanitariamente irresponsáveis e, lógico, os grandes eventos antidemocráticos, evidenciam a lógica do “poder do fim em si mesmo” bolsonarista de ser.

O último grande caso performático de Bolsonaro foi quando direcionou ofensiva ao Judiciário, enviando ao Senado o escandaloso e descabido pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Sem apresentar nenhuma evidência legal e com frases de efeitos panfletárias requintadas de argumentos jurídicos, o pedido foi rejeitado por Rodrigo Pacheco. Contudo, Bolsonaro não perdeu. Encerrou divinamente mais um ato da peça tragicômica do seu governo-campanha, mantendo sua audiência agitada e com mais ousadia e confiança para as manifestações do 7 de Setembro que se aproximara.

Nesta manifestação do 7 de Setembro, Bolsonaro colocou em cartaz mais um ato de seu processo performático golpista e antidemocrático. Sob a defesa da suposta “liberdade”, as pautas entre os fanáticos giravam em torno do impeachment dos ministros do STF, do voto impresso e auditável, mesmo tendo pauta superada, e alta politização da saúde na defesa do tratamento precoce, renomeado agora de tratamento imediato. Defesas totalmente inconcebíveis à ordem racional, democrática e de saúde pública são encampadas pelos bolsonaristas, além de serem totalmente incoerentes e ambíguas, já que utilizam da própria permissibilidade constitucional da liberdade de expressão para reivindicar sistematicamente pautas que vão contra essas mesmas liberdades. Ou seja, qual o sentido de “liberdade” para os bolsonaristas?

A ideia de liberdade só faz sentido para o raciocínio perceptivo e emocionalmente raivoso que calibra esses movimentos. Se fôssemos buscar explicação lógica, esses movimentos trazem uma coesão social para a desordem a partir da hipervaloração estética. São as cores, os gestos, as palavras de ordem dessincronizadas com a realidade pela recorrência a mentiras ou pós-verdades (fake news) e a negação do que é científico que montam essa estrutura de percepção tão importante ao bolsonarismo.

O grande carnaval antidemocrático não “flopou”, como reproduzem alguns setores da esquerda, apesar de que em Brasília apenas 5% do público estimado compareceu. O que deve também ser observado são as outras capitais brasileiras e a cena espacial enquadrada numa boa visão panorâmica registrada: a foto. O produto principal desses atos antidemocráticos é a foto como moeda de negociações golpistas e chantagens. A foto publicada no perfil do Instagram de Bolsonaro mostra a Avenida Paulista panoramicamente lotada de pontos verdes e amarelos.

Sendo assim, equivoca-se quem pensa que o saldo das manifestações deva ser medido numericamente, se foram mesmo 125 mil pessoas na Paulista, mais ou menos que isso: a percepção e o impacto visual é o que interessa. O movimento bolsonarista cria uma inversão da lógica material, com base em manipulações de ângulos e descontextualizações. É a mentira em seu estado plástico e estético. É a tática. A performance é a única dimensão para entender as agendas bolsonaristas em seus aspectos verbais e, sobretudo, não verbais. Inclusive quando ele, convenientemente, recua à linha moderada de maneira súbita e perigosa.

Bolsonaro nunca saiu de campanha. O governo é uma campanha sistemática e processual composta por eventos extraordinários públicos e privados, endossados por estímulos a crises constantes. Não subestimemos o bolsonarismo, suas técnicas e o poder da simbologia estética e emocional na política. Na combinação entre fanatismo e decisão, não é a cabeça que opera as mentes dos bolsonaristas ou do eleitor comum contaminado por esse espírito, mas as divinizações, o misticismo, o “fazer crer” que conduzem as dádivas emocionais e orientam a ação nas urnas de uma parcela significativa da população. Evidência de ideologias fascistas, alguns dizem.

Em termos pragmáticos, a estratégia rebuscadíssima bolsonarista é manter-se em campanha e, portanto, negociando com o fisiologismo no backstage e insuflando suas bases no palco até o derradeiro processo eleitoral, em outubro de 2022, onde serão, em minha opinião, retomadas outras agendas conspiratórias, das quais muitas delas o elegeram, como o antipetismo, por exemplo. O bolsonarismo quer um representante no processo eleitoral e, mesmo ganhando ou perdendo nas urnas, necessita de seu público cativo para a “esculhambação institucional”. Este pode ser um golpe de Estado com tanques e militares ou, caso não tenha articulação, organização e capilaridade para tal, um metagolpe, ou seja, algum efeito variante antissistêmico de total deterioração pública até hoje desconhecida no país. É imprevisível.

O desfecho não existe para esta performance. Um dia o teatro acaba, mas a gravidade é que não sabemos quando e nem como. Por isso, convoquemos a responsabilidade do fim deste espetáculo para os contrarregras das instituições: aqueles técnicos que operam a engenharia do Estado-Teatro Brasil. Os líderes institucionais precisam dar um fim, de uma vez por todas, neste antiprojeto de nação com a mão pesada do Estado. Deste modo, estejamos atentos à plástica da política, pois “a fabricação artificial de crises institucionais infrutíferas”, apesar de serem ficcionais, produzem, sim, frutos perigosos, mas a vigência dos direitos e da cidadania. E, esse fruto, como a maçã do Éden, uma vez mastigado, pode gerar consequências permanentes à ordem democrática e civilizatória.


Quem é Vinícius Zacarias?

Vinícius Zacarias é doutorando em Antropologia (CEAO/UFBA) e especialista em gestão pública. Pesquisa, escreve e atua nas áreas de cultura e política.

* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews


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