É preciso refletir sobre o que se quer dizer ao falar que o STF atua com ativismo judiciário. O que os acadêmicos dizem e o que a sociedade entende são mensagens diferentes
por Felippe Mendonça em 18/08/21 16:16
Hoje inicio a exploração deste espaço gentilmente cedido pelo MyNews a nós, membros do canal. E, para o texto de estreia, decidi falar um pouco sobre a minha experiência acadêmica como constitucionalista e o que vejo refletir de nossas falas na sociedade.
É comum falarem que quem é de Humanas é ruim de MATEMÁTICA, mas, muito pior, é a turma do Direito em COMUNICAÇÃO. Nós falamos uma língua própria, enfadonha, arrogante e nada acessível aos leigos, mesmo leigos bastante cultos.
Se a comunicação já é um problema comum a todos os que estudaram Direito, imagina isso ao quadrado. É o que acontece quando a pessoa vai para a vida acadêmica. Nem nós mesmos nos entendemos tanto.
Mas no academicismo constitucional brasileiro começamos cerca de uma década atrás a repetir milhares de vezes que o Supremo Tribunal Federal é ativista, sem qualquer explicação mais profunda aos leigos para que compreendam as nossas críticas.
E, sobre esse tema, a comunicação – seja lá o que for isso, pois sou desses acadêmicos do Direito – tá longe de ser boa (isso consigo identificar), pois falamos sem parar, nem mesmo para medir o que os receptores da informação estão entendendo.
Então, começando pelo início, quando criticamos o tal do ativismo judicial, estamos falando de meia dúzia de decisões em que o Supremo Tribunal Federal avançou um pouco e foi além de suas funções (ok, em algumas passou muito da faixa) e, em vez de aplicar o direito – normas jurídicas aprovadas pelos Poderes políticos: Executivo e Legislativo –, criou o direito para além do que nossos representantes decidiram, reconhecendo o direito sem qualquer fundamentação efetivamente jurídica, mas, sim, política.
Acho que ainda não está tão claro, então vou tentar esclarecer.
O Estado (poder público) precisa reconhecer nossos direitos como válidos e o mecanismo democrático que criamos para isso é através do Poder Legislativo e do Poder Executivo, cabendo ao Judiciário apenas aplicar esse direito, ou barrar quando identifica alguma inconstitucionalidade nele.
Vou exemplificar, primeiro de forma esdrúxula, depois em casos reais.
Vamos supor que religiosos queiram que seja reconhecida pelo Estado uma norma religiosa, como é a “NÃO COBIÇARÁS A MULHER DO PRÓXIMO”, e façam pressão nos órgãos políticos para que seja estabelecido por lei que quem cobiçar a mulher do próximo terá que indenizá-lo.
A constituição prevê o processo legislativo exatamente para estabelecer que a briga dos religiosos para o reconhecimento dessa norma seja através dos órgãos políticos, prevendo possibilidades para isso tanto no Poder Legislativo, quanto no Poder Executivo. É democrático que eles possam brigar por isso.
O ATIVISMO do Judiciário se configuraria se uma pessoa descontente por não conseguir democraticamente ter essa norma reconhecida pelo Estado, buscasse esse reconhecimento no Poder Judiciário e efetivamente tivesse reconhecido seu direito a ser indenizado por alguém que cobiçou sua mulher.
Acredito que pelo exemplo esdrúxulo, ficou mais fácil entender. Caberia mil páginas para explicar o que é “direito”, “norma jurídica”, “reconhecimento de direitos” e o escambau, e ainda existiriam vários conceitos errados e até contraditórios nos inúmeros livros de Direito, mas acho que, embora bem simplificado – e escrito por um advogado-acadêmico – dá para entender. Se não der, grita que explico novamente.
Podemos seguir em frente?
Bora lá…
Na década passada, principalmente pela composição do STF (os 11 ministros daquela época), percebemos na academia uma tendência do Supremo de reconhecer alguns direitos de grupos minoritários que enfrentavam resistência para ter o reconhecimento de direitos pelas vias democráticas normais.
A decisão mais emblemática foi quando o STF reconheceu (e legislou por conta própria) o direito fundamental de greve dos servidores públicos, pois a Constituição diz claramente que eles têm esse direito, mas em seguida determina aos órgãos políticos que façam uma lei dizendo como funcionaria essa greve de servidores, prejudicando o mínimo possível o resto da sociedade.
Vinte anos se passaram desde a aprovação da Constituição e nada dos órgãos políticos fazerem essa lei. Maldade pura. Foi aí que o STF decidiu que os servidores públicos poderiam exercer o direito fundamental de greve nas mesmas condições dos trabalhadores do setor privado. Ou seja, criou norma onde não existia, tirando da cartola e dando uma banana aos políticos omissos.
Na mesma época, tivemos a questão da saúde dos portadores do vírus HIV – inclusive foi essa decisão que fez o Poder Executivo dar seus pulos e criar os tais remédios genéricos.
Por ser um país conservador e tacanho, políticos tinham medo de reconhecer o direito à saúde dos portadores do vírus HIV, até hoje vítimas de enorme preconceito na sociedade, principalmente dos grupos mais conservadores.
Era preciso incluir, dentre os tratamentos gratuitos do SUS, os caros remédios do coquetel que mantém essas pessoas vivas. Decisão que caberia ao Poder Executivo, através da ANVISA.
Mas esse reconhecimento POLÍTICO, naquela época (acho que hoje seria ainda pior), poderia causar prejuízos eleitorais para os políticos envolvidos e, com isso, por mais que esse grupo buscasse pelas vias democráticas, não tinha seu direito reconhecido. Por fim, morriam!
Foi lá o STF e reconheceu o direito deles. Deu outra banana aos políticos inertes e mandou incluir naquela lista da ANVISA todos os remédios que protegem a vida e a saúde dos portadores do vírus HIV.
O então ministro da saúde, José Serra, se já não fosse careca, teria ficado ali. De uma hora para outra, por ordem do Poder Judiciário, teve um aumento enorme na previsão de gasto com a saúde pública, e cabia a ele tirar algum coelho do chapéu e resolver o problema, pois todos nós temos direito à vida.
Esses dois exemplos são suficientes para ver que, embora estivéssemos gritando na academia que é perigoso o ativismo judicial, em geral, MATERIALMENTE concordávamos com essas decisões.
Ainda que críticas ferrenhas tenham sido feitas, o medo maior dos acadêmicos em geral não era (e continua não sendo) essas decisões em que grupos minoritários têm seus direitos fundamentais reconhecidos pelo STF, ao menos não no que chamamos de “núcleo essencial dos direitos fundamentais”. Tá tudo certo, estamos tranquilos, pois é facilmente defensável que esse tipo de decisão está dentro das funções do Supremo, por se tratar de direito fundamental, e em prejuízo absoluto do seu exercício nitidamente por pouco caso dos órgãos políticos.
É claro que o STF não parou nessas boas decisões e tomou algumas outras bem mais questionáveis, algumas até medonhas, como foi a tese do “domínio do fato”, que, ao contrário das anteriores, fere direitos fundamentais do povo brasileiro; ou quando chegou a passar um período concordando com prisão antes do trânsito em julgado (fim do processo), contrariando frontalmente a constituição e novamente querendo criar norma que não existe e em prejuízo aos nossos direitos fundamentais do povo (em ambos os casos, nem mesmo os legisladores poderiam criar essas normas, pois seriam inconstitucionais).
Mas, mesmo tendo derrubado a água da bacia algumas vezes, está muito longe de ser um Tribunal que rasgou a constituição e passou a legislar por conta própria. Bem longe, MESMO.
Claro que pelo resto do Judiciário tem de tudo, mas isso sempre teve e sempre vai ter. Todos devem conhecer a famosa frase “cabeça de juiz e bunda de neném, não se sabe o que é que vem…”.
Só que a gente, na academia, não para com nossas críticas ferrenhas ao STF, até porque, é a nossa função mesmo criticar, não só o Supremo, mas todos os órgãos públicos. Não estamos na academia para escrever teses louvando o bom funcionamento do Estado, mas, sim, para apontar erros e necessidades de melhorias – óbvio (o Direito como ciência é exatamente isso: identificamos o que vai mal e apontamos soluções possíveis, testando através de métodos científicos).
E essa crítica do ativismo repetida mil vezes por professores de Direito, acabou saindo da academia e chegou nos ouvidos dos leigos, sem que ninguém parasse para explicar efetivamente do que estávamos falando.
É o que estou tentando fazer nessas poucas linhas.
O risco de um Judiciário ativista existe e vamos continuar falando sobre isso, mas os leigos começaram a tratar TODAS as decisões como se fossem ativistas.
Um exemplo que chega a ser patético foi quando um policial do Rio de Janeiro deu entrevista coletiva após um massacre em uma favela e disse que decidiram não respeitar a decisão do STF que proibia operações daquele tipo, ao menos durante a pandemia, pois consideravam que a Corte é muito ativista. Nem ao menos se tratava de uma decisão ativista, mas, ainda assim, os policiais consideraram que era e, portanto, se sentiram no direito de não obedecê-la.
As consequências disso podem ser graves até mesmo para esses policiais, pois cometeram crime ao descumprir a ordem judicial. Mas, se pararmos para analisar, o problema é bem mais profundo do que isso, pois a credibilidade do STF, como instituição, vem cada vez mais sendo prejudicada dentro da sociedade que escuta tantas vezes acadêmicos reclamando.
E, na academia, não estamos nem aí para isso, sério! (Talvez só eu, que vim aqui escrever esse artigo de cunho mais jornalístico do que jurídico).
Se algum aluno, hoje, vier me perguntar sobre um bom tema para escrever em dissertação de mestrado ou tese de doutorado, vou dar essa dica: “REFLEXOS NA SOCIEDADE DOS DISCURSOS CONTRA O ATIVISMO”. Pena não ter tempo para escrever sobre isso e falar tudo que falei aqui em juridiquês-academicista (aquela língua que falei lá em cima que nem nós mesmos entendemos).
Se tiver alguém me ouvindo aí, pode pegar o tema e levar adiante, pois precisamos aprender a nos comunicar com a sociedade, ou pelo menos estudar o estrago que a nossa péssima comunicação causa.
Felippe Mendonça é Doutor e Mestre em Direito do Estado pela USP; advogado; coordenador adjunto do L.L.M. em Constitutional Law Practice do IBEC/FADISP; coordenador do Projeto Colaborativo Escola de Direito; Divulgador Científico do canal Sem Gravata; ex-assessor jurídico da Controladoria Geral do Município de São Paulo; ex-membro da Comissão de Ética na Governança do IBGC; membro da Comissão Permanente de Compliance do IASP; Membro Fundador da Frente Ampla Democrática de Direitos Humanos – FADDH
* As opiniões das colunas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão do Canal MyNews
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