Os desafios de Boric para encontrar um consenso são enormes, e sua debilidade começa a se fazer notar, em suas diferenças com o Congresso e com a incapacidade, sequer, de nomear alguém de sua confiança para comandar a memória de data tão nefasta para o Chile.
Em 13/07/23 12:19
por Coluna da Sylvia
Sylvia Colombo nasceu em São Paulo. Foi editora da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e atuou como correspondente em países como Reino Unido, Colômbia e Argentina. Escreveu colunas para o New York Times em Espanhol, o Washington Post em Espanhol, e integra os podcasts Xadrez Verbal e Podcast Americas. Entrevistou a vários presidentes da regão. Em 2014, participou do programa da Knight Wallace para jornalistas na Universidade de Michigan. É autora do "Ano Da Cólera", pela editora Rocco, sobre as manifestações de 2019 em vários países da regiõa. Vive entre São Paulo e Buenos Aires, enquanto viaja e explora outros países da Latam
foto: Freejpg/pixabay
A noite em que se conheceu que Gabriel Boric seria o novo presidente do Chile, em 19 de dezembro de 2021, foi de festa para os progressistas. Desde socialistas de antiga data, a allendistas, partido comunista, centro-esquerda e a chamada “direita democrática”, que se assustou com o avanço da extrema-direita que representava a opção de José Antonio Kast, saíram para comemorar.
Porém, lembro-me que, voltando daquela cobertura do centro até o hotel em Santiago, já avançada a madrugada, me topei com um grafitti recém pintado num muro: “Boric, não brinque com os presos políticos!”.
A assinatura era clara, tratava-se dos jovens representantes de esquerda do Partido Comunista e de outras agrupações relacionadas. Eles, que foram o coração dos protestos de 2019 e que deram o primeiro passo para a instalação da Assembleia Constituinte (primeira versão), já vinham mostrando desgosto com Boric.
Primeiro, porque se afastava de sua base eleitoral para aproximar-se do centro político e até da direita. Hoje, teve de retroceder em vários pontos progressistas de sua agenda e até celebrar os Carabineros responsáveis por abusos de direitos humanos nos protestos. Tampouco liberou os chamados “presos políticos”, detidos naquela fase, ou fez gestos de resolver as questões de violência no Sul, que vira e mexe recebe intervenções militares.
O partido comunista já não se vê representado por ele e aproveita todas as oportunidades para criticá-lo.
O mais recente desses episódios ocorreu no último mês. Boric havia nomeado o escritor e jornalista Patrício Fernández, criador da revista The Clinic e progressista, para cuidar das comemorações dos 50 anos da ditadura chilena (1973-1990), que ocorrem no próximo mês de setembro.
Pois, integrantes do PC foram vasculhar tuítes e postagens de Fernández, e encontraram ali o que alegam ser uma campanha de relativização da ditadura. Junto a outras 160 agrupações relacionadas à defesa dos direitos humanos, pediram sua cabeça a Boric.
A principal discórdia ocorreu num trecho de uma entrevista de rádio em que Fernández foi entrevistado pelo sociólogo Manuel Antonio Garretón. Na entrevista, o jornalista, que fez parte da Assembleia Constituinte, afirmou que era necessário estudar mais as razões do golpe militar e que atitudes do presidente socialista Salvador Allende poderia ter provocado o giro dos militares contra ele.
As críticas foram ferozes. Patrício Fernández retrucou que nunca justificaria um golpe de Estado. Porém, seu cancelamento nas redes sociais e no ambiente político foi rápido. Enquanto isso, membros da oposição atacaram a esquerda, por sua virulência contra um de seus próprios integrantes. A fogueira já estava acesa e vários representantes dos partidos de direita, estes sim, saíram a dar declarações relativizando a ditadura.
“Eu sim justifico o golpe militar, vimos o cancelamento imediato de uma pessoa de esquerda que não era suficientemente de esquerda para o setor mais radical”, disse Jorge Alessandri (UDI).
Foi demais para Fernández, que renunciou ao posto. “Minha pessoa se transformou num obstáculo para o bom desenvolvimento dessa comemoração. O desafio é tão grande e importante, que peço que entendam porque estou dando um passo para o lado”.
Para não causar mais turbulências nessas delicadas comemorações do 11 de Setembro, não nomeou um novo nome, e sim encarregou distintos ministérios de cuidar das atividades que ocorrerão no período.
O período militar chileno fez mais de 3 mil vítimas, entre mortos e desaparecidos, dentre os quais apenas 307 foram até hoje identificadas.
Com a esquerda rachada, brigando entre si, e os ultradireitistas ganhando tração, uma vez que derrotaram a Constituinte no ano passado e agora são maioria na nova Assembleia, o Chile chega à data histórica de 50 anos de uma ferida que, em vez de estar cicatrizando-se, parece reabrir.
Os desafios de Boric para encontrar um consenso são enormes, e sua debilidade começa a se fazer notar, em suas diferenças com o Congresso e com a incapacidade, sequer, de nomear alguém de sua confiança para comandar a memória de data tão nefasta para o Chile.
Ainda neste ano, os chilenos voltarão às urnas para decidir sobre a segunda versão da nova Constituição. Uma derrota do governo ali pode significar que a estrada estará ainda mais aberta à extrema-direita no Chile.
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