Política

Entrevista

Morte de Marielle Franco expôs pandemia criminosa sobre o Rio, diz autor de livro sobre o crime

MyNews conversou com Chico Otávio, autor de livro sobre o crime que já completou mil dias

por Hermínio Bernardo em 13/12/20 16:09

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Gomes completou mil dias na última terça-feira (8). O crime foi cometido em 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro e até o momento a motivação continua desconhecida.

A Delegacia de Homicídios e o Ministério Público ainda investigam o caso. Um ano após o crime, em março de 2019, o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio de Queiroz foram presos suspeitos de serem os executores. O mando do crime, no entanto, continua sem solução. Os investigadores apuram ainda se as armas usadas na execução foram jogadas no mar e a ligação de milicianos no caso.

O jornalista e escritor Chico Otávio, junto com a jornalista Vera Araújo, escreveu o livro “Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca” (Ed. Intrínseca). Em entrevista ao MyNews, ele afirma que a morte da vereadora ajudou a escancarar uma realidade que era, até então, em boa parte ignorada pela imprensa e pela sociedade.


MyNews: Qual foi o seu objetivo e da Vera com o livro? É uma espécie de reconstituição dos fatos desse crime?

Chico Otávio: Nós mergulhamos nessa história desde o primeiro momento. Nós acabamos juntando as nossas expertises. A Vera com a longa experiência dela no campo da segurança pública, ela é inclusive a inventora da expressão “milícia” com uma reportagem dela que começou a dar nome a essa organização paramilitar, e eu com a minha experiência na área de política, desde que eu entrei no O Globo em 1997. E esse crime tinha essa característica. É um mix entre o mundo criminoso e o mundo político. Então, foi uma combinação do ponto de vista da cobertura jornalística, uma combinação perfeita.

Você me perguntou como nasceu essa ideia do livro. Na verdade, foi um processo natural de uma apuração muito intensa que continuamos até hoje, cobrindo o caso, que não terminou. O jornal, mesmo com o site, não deu vazão, não deu conta de todo esse material apurado. Então sentíamos essa necessidade de ter um espaço maior para dar tudo aquilo que queríamos e melhor, amarrando as pontas numa única narrativa que facilitasse para o leitor entender todo esse processo da investigação desde o dia 14 de março de 2018.

Sessão solene em memória de Marielle Franco e Anderson Gomes na Câmara dos Deputados, em 18 de março de 2019
Sessão solene em memória de Marielle Franco e Anderson Gomes na Câmara dos Deputados, em 18 de março de 2019.
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz estão presos suspeitos de participação no crime que continua sem solução. Quem são eles? E estamos próximos de responder a pergunta: quem mandou matar Marielle?

Você falou em um crime sem solução, eu prefiro dizer que é um crime de solução parcial. Isso porque os supostos executores estão presos e, sinceramente, pela minha experiência com mais de 30 anos de estrada, acho que as provas colhidas contra os dois são bem razoáveis. É claro que não sabemos como funciona a cabeça de um tribunal do júri, provavelmente o caso vai ser julgado no segundo semestre de 2021. Não sabemos não sabe o que vai acontecer, mas a polícia arrecadou provas concretas de que o Ronnie Lessa pesquisou o endereço da Marielle nos dias que antecederam a morte da vereadora. Era o endereço do ex-marido, que constava como sendo o domicílio da Marielle no sistema de segurança pública.

E mais. Ele comprou equipamentos que têm ligação direta com a execução: silenciadores, equipamentos para submetralhadora, um equipamento que evita o rastreamento do carro. Então, tem todo um contexto. O movimento dos celulares dos dois executores até um ponto da Barra da Tijuca de onde o carro teria saído. Então, essas provas não são suficientes para botar o Ronnie Lessa e o Elcio de Queiroz no Cobalt [modelo de carro] que cercou a Marielle naquela noite no Estácio, eles não estão dentro do carro, em tese. Mas elas são bem razoáveis para significar uma condenação. 

O que falta é o mando. Quem teria contratado esses dois pistoleiros e por que motivo teriam contratado para executar Marielle e Anderson? A polícia tem uma linha de investigação forte que está em andamento. Evidentemente, não queremos divulgar nada e nem atrapalhar as investigações, mas a polícia está otimista. E o Ministério Público, talvez um pouco mais cauteloso, exigindo mais provas para apostar definitivamente nessa linha.

Analisando essa falta de resolução quanto ao mando, foi um crime bem planejado e sofisticado?

Acho que foi muito bem planejado, feito por profissionais. Quando resolvemos entrar para valer, a Vera que tinha mais experiência falou assim: “Chico, você está preparado para abrir as portas do inferno?”. Eu falei: “vamos nessa”, e foi o que aconteceu.

Impressionante o tamanho da coisa, o grau de sofisticação chegou a um ponto que determinadas organizações criminosas ligadas à contravenção e à milícia terceirizaram seus assassinatos e daí surgiu o escritório do crime. Temos episódios ligados ao escritório do crime que voltam ao ano de 2003, então essa relação sangrenta, obscura, já existia quase duas décadas antes do assassinato de Marielle. E de certa forma a cobertura nos permitiu lançar um olhar mais apurado para isso, para esse submundo. E foi surpreendente.

Mais surpreendente foi saber que de certa forma isso estava sendo ignorado pelas autoridades, pela imprensa e principalmente pela sociedade. Sinceramente, acho que a sociedade entendeu que enquanto eles estavam se matando, enquanto as mortes aconteciam no âmbito deles por disputas territoriais, deixava rolar. O problema foi quando mataram a Marielle, o que foi realmente um ponto fora da curva e acordou as autoridades. Na verdade, a própria sociedade acordou a mídia e eu me encaixo nisso, faço uma autocrítica para olhar com mais atenção para essa verdadeira pandemia criminosa que o Rio de Janeiro vive.

Qual a participação das milícias no caso da Marielle Franco e do Anderson Gomes? Pensando de forma geral no Rio de Janeiro, qual é o papel desses grupos na violência e no crime organizado?

Eu não posso entrar em detalhes, mas a hipótese mais forte da polícia trabalha com o crime de vingança. Algum miliciano ou milicianos, que a CPI das Milícias teria denunciado lá atrás em 2008, teria praticado agora uma vingança. Não podia atacar o Freixo, vamos atacar alguém que é ligado ao Freixo, vamos fazê-lo sofrer. A Marielle era quase uma afilhada política do Freixo, ela começou na Comissão de direitos humanos da Assembleia e foi uma aposta do Freixo. Ele mergulhou profundamente na campanha dela [para vereadora] em 2016.

Então, se tem uma relação com a milícia, a primeira delas é nessa linha aí. A linha mais forte de investigação da direção do mando envolve a milícia. E o segundo ponto é o próprio Ronnie Lessa. Ele tem uma ligação muito forte com a milícia da Gardênia Azul, ele teve uma passagem pelo escritório do crime. Então a ligação é profunda. O Ronnie Lessa teve uma academia de ginástica em Rio das Pedras. E ninguém tem uma academia de ginástica em Rio da Pedras sem o aval da milícia.

A vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro
A vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro.
(Foto: Renan Olaz/CMRJ)

O caso da Marielle repercutiu não só aqui no Brasil como em vários países, chamou a atenção da comunidade internacional. O que representou a morte de Marielle? Como você classificaria?

Olhando para as pesquisas do Lessa e do Elcio de Queiroz no Google, no Facebook, eu vi muito ódio, muito. As lutas identitárias, a questão racial… muito ódio e isso me espantou demais. Isso foi para mim o principal aprendizado. Como de certa forma esse ódio foi crescendo e muita gente não reparou. Eu não diria que o Lessa fez aquilo motivado pelo ódio, mas que ajudou, ajudou.

Segundo ponto importante: toda vez que chegávamos a algum suspeito, seja ele ex-PM ou miliciano, a primeira questão era buscar no site da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ou da Câmara Municipal se ele tinha sido agraciado com alguma homenagem ou medalha, e era batata! Impressionante como a classe política passou a mão na cabeça desses caras. Eu não diria em termos de repercussão internacional que talvez a comunidade internacional tenha um interesse tão grande nesse assunto, mas eu fico espantado com o nível de ódio e de tolerância da classe política a esse ódio que estava o tempo todo presente, espreitando as lutas sociais no Rio de Janeiro. E acredito que não seja um problema do Rio, é um problema nacional.

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