Publicação reúne artigos de Jamil Chade publicados no jornal El País e no portal UOL entre o início da pandemia da Sars-Cov-2, em março de 2020, até junho de 2021.
por Marinete Veloso em 25/03/22 11:58
Jornalista Jamil Chade apresenta o programa Cruzando Fronteiras, do MyNews. Foto: Reprodução (Agência Pública)
Por suas dimensões físicas está quase no padrão de um livro de bolso, mas seu conteúdo abriga uma enormidade de informações densas e veementes sobre o mundo atual. Assim é Luto, que o jornalista Jamil Chade, baseado em Genebra, Suíça, lança no Brasil neste final de março.
A obra reúne seus artigos publicados entre março de 2020, início da pandemia de Sars-Cov-2 até junho de 2021, para o jornal El País e o portal UOL. Didaticamente, são apresentados na ordem cronológica dos acontecimentos, o que auxilia o leitor na reconstituição imediata daqueles turbulentos quinze meses.
As ideias de Chade, engenhosamente concisas e bem fundamentadas se traduzem em uma prosa leve e ágil, de impressionantes clareza e objetivismo. Ele domina magistralmente a linguagem e sabe empregá-la ora como provocador, ora como observador à distância, mas nunca com isenção ou alheio aos fatos. Escreve com a paixão dos que acreditam na vida, no ser humano e não se furta hora alguma de expressar sua opinião sobre o que vê à sua volta.
A proposta de Luto está estampada no subtítulo da impactante capa: reflexões sobre a reinvenção do futuro. Mas que futuro será esse, considerando-se que o livro cobre o período de quinze sombrios meses de uma pandemia que devastou o mundo? Como o próprio Chade esclarece, Luto não é um livro sobre a pandemia, mas sobre a luta de reinventar o futuro, pois não há outra opção. “Em jogo está nossa sobrevivência”, desafia, acrescentando: “Para que eu sobreviva, meu inimigo precisa ser vacinado. Para que a rica Suíça esteja segura, Uagadugu, em Burkina Fasso, precisa receber vacinas”.
No espaço de tempo 2020 e 2021 retratado na obra, Chade vê aí “o ato fundador do século 21”, quando a era do mundo infinito e do progresso ininterrupto chegaram ao fim. “Inicia-se a era do reconhecimento da vulnerabilidade do ser humano no planeta. Consolida-se a noção de que o contrário de uma sociedade pobre não é uma sociedade rica, mas uma sociedade justa”.
Segundo ele, alguns de seus textos foram escritos como uma explosão de indignação, no calor dos eventos; outros “me atormentaram por noites até serem traduzidos ao papel”.
Muitas vezes escreve com furor, como se de suas palavras pretendesse modificar a realidade. Em fevereiro de 2021, escreveu, mais de 181 milhões de doses da vacina tinham sido distribuídas pelo mundo, mas apenas 10 países receberam o equivalente a 75% dos imunizantes, 20% desse total apenas nos Estados Unidos. “Àquela ocasião, outros 130 países ainda viviam a expectativa da primeira dose, numa fila de 2,5 bilhões de pessoas”, denuncia. Ficava claro para ele, ali, que “vida e morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e de onde, por acidente, nasceu. ”
Simbolicamente, o artigo que dá nome ao livro, se encontra na parte central do exemplar, intitulado “O Luto como resistência”. Neste ponto, Chade faz a seus leitores a pergunta crucial: “De que precisaremos para nos transformar em nação?”. E ele próprio responde: “Luto como ato de resistência. Um grito de mobilização. O luto, enfim, como insurreição de consciências. Essa sim, uma homenagem real àqueles que morreram e uma chama de esperança para os que permaneceram”.
Impossível não associar o título Basta! do capítulo 14 a esta mesma palavra proferida 47 anos atrás pelo cardeal arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns que, em tom grave e contundente, no interior da Catedral da Sé no Centro de São Paulo, exigia corajosamente um Basta! à repressão e à ditadura militar, na missa do jornalista Wladimir Herzog. E Chade associa este lancinante grito de Basta! ao momento atual da nação brasileira: “Chegamos ao limite da indecência e da imoralidade. Basta!”. Mas o governo atrelado ao poder no momento “não sabe qual o limite da indecência”.
Ao comentar o Brasil de hoje, Chade é incisivo: “A pior crise sanitária em 100 anos no Brasil poderia ter mobilizado a nação por sua sobrevivência”. Ao invés de proteger seus cidadãos, o governo atuou deliberadamente para ampliar o sofrimento de seu povo.
Jamil Chade escreve com elegância, onde cada palavra tem seu lugar estratégico na frase; não há digressões. Sabe o que vai dizer e o faz com estilo e leveza. E se permite até momentos de reflexões filosóficas, quase líricas: “A mudança e a ciência – ao lado do amor – certamente são alguns dos aspectos mais misteriosos da humanidade. ”
Padre Júlio Lancellotti, que assina o prefácio do livro, diz que as reflexões de Jamil Chade são “um libelo de luta e resistência num tempo assombrosamente difícil”. Segundo Lancellotti, escrever sobre a realidade sem desumanizar a vida é o traço característico do jornalista, que sabe transformar o luto em luta: “Jamil Chade nos ajuda a manter a coragem de lutar e sonhar, indignados, mas com esperança teimosa, que insiste em não desaparecer. ” Ou como diz Zélia Duncan na contracapa da obra: “este livro acredita no que há de humanos em nós, sem deixar de reconhecer nossos tantos descaminhos como semelhantes”.
Os fatos retratados em Luto já aconteceram, são amplamente conhecidos, mas mesmo assim surpreendem e cativam o leitor por suas revelações e sua narrativa instigante. A essência de Luto está exatamente na capacidade de conduzir o leitor por caminhos já trilhados, mas fazendo-o refletir sobre o que está por vir, como quer seu autor sobre a “reinvenção do futuro”.
“A principal divisão no mundo não é entre esquerda e direita. Nem entre religiosos e ateus. Mas entre humano e desumano. É nessa encruzilhada civilizatória que nossa geração no Brasil se encontra”. – Jamil Chade.
“Luto. Reflexões sobre a reinvenção do futuro”, Jamil Chade, Editora ContraCorrente, São Paulo, 176 páginas, 2022, R$ 45,00.
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