Agência Pública levantou cinco processos do programa Adote um Parque referentes a reservas extrativistas na Amazônia; comunidades não foram consultadas.
por Bruna Bronoski da Agência Pública em 06/04/22 12:48
A marisqueira Sandra Regina, que vive na Reserva Marinha Mãe de Curuçá, na baía do Marajó (PA), lembra direitinho quando ouviu falar pela primeira vez do Programa Adote um Parque, há cerca de um ano. Foi através de uma mensagem enviada por Ana, também líder comunitária na Reserva Extrativista Marinha Lagoa de Jequiá, no litoral de Alagoas, que perguntava: “Você está sabendo algo sobre o Adote um Parque?”.
Nenhuma das duas sabia nada sobre o programa lançado pelo ex-ministro do Meio Ambiente (MMA) Ricardo Salles e assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em decreto de 9 de fevereiro de 2021. O programa permite que empresas e pessoas físicas, brasileiras ou estrangeiras, “adotem” uma ou mais das 132 unidades de conservação listadas em uma portaria do Ministério do Meio Ambiente (MMA), publicada 16 dias depois, a fim de “promover a conservação, a recuperação e a melhoria das unidades de conservação federais”. Os contratos entre interessados e o ICMBio – gestor dos recursos – são anuais e estabelecem um valor anual mínimo de R$ 50 ou 10 euros por hectare da área adotada.
A informação mais desconcertante para as lideranças comunitárias é que, além dos parques nacionais, também as reservas extrativistas (Resex) foram incluídas no programa, como Sandra conseguiu confirmar com a Comissão das Reservas Extrativistas (Confrem) depois de diversas ligações para lideranças comunitárias. A entidade ainda aguardava mais detalhes do programa por parte do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Aí minha preocupação aumentou”, diz Sandra Regina. Só na Resex em que ela vive, a Mãe de Curuçá, cerca de 6 mil famílias dependem da integridade de seu território para viver. Ao todo, 50 Resex — de um total de 66 no país — estão na lista do Adote um Parque.
Separadas por mais de 2 mil quilômetros de litoral entre o Pará e Alagoas, as comunidades de Sandra Regina e Ana compartilham o mesmo modo de vida em harmonia com a natureza, sobrevivendo da pesca artesanal e da agricultura familiar como fizeram seus pais, avós e bisavós. Também enfrentam ameaças parecidas em seus territórios: a invasão da pesca predatória, a expansão da carcinicultura e a destruição dos mangues. Na Amazônia, onde ficam 77% das Resex, centenas de comunidades vivem também da castanha, do babaçu e do açaí, da roça de mandioca, da coleta ou cultivo de frutas, da pesca nos rios. Quase sempre enfrentando ameaças de invasões e desmatamento.
São esses dois elementos — o uso sustentável do território e a proteção das comunidades contra a destruição ambiental — que fazem das Resex peças estratégicas na política de conservação ambiental brasileira. Elas pertencem a uma categoria diferente dos Parques Nacionais. Enquanto qualquer atividade econômica é proibida nos parques, nas Resex a permanência da população tradicional no território é parte integrante da defesa dos recursos naturais. Um exemplo: desde que a reserva de Curuçá, onde vive Sandra, foi criada, em 2002, o desmatamento na área caiu de 116 hectares para 10 hectares por ano em 2020, segundo dados de monitoramento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial) publicados pelo Instituto Socioambiental (ISA).
A história da criação das Resex é também uma história de luta pela permanência no território e pelo uso sustentável da floresta. O modelo nasceu em 1985, a partir da saga dos seringueiros no Acre, conhecida internacionalmente pela liderança de Chico Mendes, assassinado três anos depois em Xapuri (AC). A Resex Chico Mendes foi a primeira a ser reconhecida por lei, em 1990. É por isso que o conselho nacional que congrega a população de reservas extrativistas manteve sua sigla como CNS — com o “s” de seringueiros.
Foi dali que partiu a primeira reação organizada das comunidades extrativistas, com o lançamento de um documento destacando a particularidade das Resex e sua incompatibilidade com as regras do programa. “As Reservas Extrativistas não são parques”, apontou o CNS, que também fez um requerimento ao Ministério Público Federal (MPF), Congresso, Advocacia-Geral da União (AGU), ao MMA e às presidências do Ibama e ICMBio pedindo a imediata exclusão das Resex do programa.
A Resex da Lagoa de Jequiá, em Alagoas, onde vive Ana, não foi incluída nessa primeira lista, já que todas as adotáveis, por enquanto, ficam na Amazônia Legal, caso da Resex em que vive Sandra Regina (listada, mas ainda não adotada). Até a saída de Salles do MMA, as adoções se limitavam à região, mas Joaquim Leite expandiu o programa ao bioma Caatinga, ofertando dez unidades de conservação (UCs). Entre elas está o Parque Nacional Chapada Diamantina, na Bahia, por uma adoção de R$ 3,2 milhões. Segundo o MMA, não há restrição para inclusão dos demais biomas ao programa.
Em setembro de 2021, em resposta ao requerimento do CNS acolhido pelo MPF do Amazonas, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (CCR) do MPF fez uma recomendação ao MMA pedindo a retirada de todas as reservas extrativistas do programa, bem como os parques nacionais com sobreposição a áreas de comunidades tradicionais ou terras indígenas. De acordo com um levantamento feito pela ONG Terra de Direitos (ver páginas 67 e 68), das 132 UCs selecionadas, 19 dividem a mesma área com terras indígenas. Outras oito UCs estão sobrepostas a comunidades quilombolas.
A recomendação também aponta o descumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As Resex tiveram seus nomes publicados para adoção sem que houvesse consulta livre, prévia e informada das comunidades sobre o programa, o que fere a convenção, da qual o Brasil é signatário. Afinal, no caso das Resex, são as comunidades que detêm a Concessão do Direito Real de Uso (CDRU) sobre o território, como explica o advogado Manoel Camargo, que redigiu o documento sobre a regulação das reservas extrativistas na década de 1990.
“O direito real de uso é real sobre a propriedade, um dos direitos mais fortes. Uma concessionária, em qualquer instrumento jurídico, tem direitos e obrigações referentes à gestão absoluta da área. No caso das reservas extrativistas, as associações são concessionárias e o ICMBio é um representante do concessionário”, afirma o advogado. Para ele, o programa do governo federal viola a legislação também por desrespeitar o conselho gestor paritário do ICMBio e comunidades. O decreto assinado por Bolsonaro e Salles atribui unicamente ao ICMBio a responsabilidade de avaliar e selecionar as propostas das empresas e também a gestão de aplicação dos recursos provenientes do programa. “Nós não somos órfãos, não estamos à venda. Dentro do território nós devemos ser respeitados pelo Estado brasileiro como corresponsáveis por essa gestão”, sublinha Dione Torquato, secretário-geral do Conselho Nacional das Reservas Extrativistas.
“A gente entende que tem pontos [no texto do decreto] que precisam, no mínimo, de ajustes. O principal deles é a consulta prevista na Convenção 169 […] Submetemos a minuta à CCR para ver se eles pedem [a exclusão] para o país todo”, explicou o procurador da República no AM, Fernando Merloto Soave. Assinada por três subprocuradores-gerais da República, a recomendação do MPF fixou o prazo de 10 dias para o Ministério do Meio Ambiente tomar providência. Até o momento, porém, o documento foi ignorado pela gestão de Joaquim Leite, que assumiu a pasta em junho de 2021 depois das polêmicas que envolveram seu antecessor Ricardo Salles, investigado por supostamente favorecer o desmatamento ilegal na Amazônia.
Diante da ausência de medidas do governo Bolsonaro, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (CCR) encaminhou a informação sobre o não acatamento da recomendação para a Procuradoria da República do Distrito Federal que informou à reportagem que o caso “está sob análise do gabinete para decisão sobre o andamento a ser dado”. Por meio de nota, o ICMBio e o MMA informaram que “não houve nenhuma adoção de Resex até o momento” e que “todos os processos ainda estão em andamento”.
A Pública teve acesso aos protocolos das cinco Resex que foram surpreendidas pelos processos de adoção: a Resex do Quilombo do Frechal, no Maranhão, escolhida pela Heineken; e a Resex Lago de Cuniã, em Rondônia, selecionada pelo Carrefour; e mais três Resex no Pará: a Reserva Marinha Cuinarana, em adoção pela MRV; a Resex Chocoaré-Mato Grosso, nas mãos da Geoflorestas, e a Resex de São João da Ponta, eleita pela cooperativa de crédito Sicoob Coopecredi.
A reportagem também conversou com lideranças dessas e de outras Resex – listadas, mas ainda não adotadas – e encontrou um misto de receio de perda de autonomia no território e expectativa de melhoria de produtividade e renda com o apoio das empresas. Algumas lideranças são francamente contrárias ao projeto, como as da Resex Verde para Sempre, no Pará, que é a maior entre as listadas pelo governo, com área de quase 1,3 milhão de hectares. Para adotá-la, seria preciso um investimento de R$ 64 milhões em um ano.
“Essa característica [o tamanho] até nos ajuda, gera uma certa resistência em quem tem interesse em adotar”, comemora Edilene Duarte da Silva, presidente do Comitê de Desenvolvimento Sustentável da Resex, criada em 2003, depois de 23 anos de luta da comunidade contra empresas pesqueiras e madeireiras. “Não estamos contentes quando a gente olha para o Ministério do Meio Ambiente e vê que o único programa que foi criado veio para ameaçar as comunidades”, criticou a liderança.
Já entre os que vivem em Resex em processo de adoção e conversaram com a reportagem, a opinião é unânime: as comunidades aceitam parcerias financeiras desde que possam participar ativamente do processo, o que até agora não aconteceu, de acordo com seus relatos.
Um ano após o lançamento do programa, cinco das 50 Resex disponíveis para adoção tiveram a ata de resultado de adoção publicada, sem concorrência com outras empresas. Ou seja, as cinco empresas que participaram do edital tiveram suas propostas aceitas pelo governo, mas ainda não firmaram o Termo de Adoção. Mesmo sem esse compromisso formalizado e, portanto, sem investir um real, já apresentam o projeto em sites e eventos como propaganda de seu suposto compromisso com as comunidades e com a preservação ambiental sem detalhar o que pretendem fazer nos territórios.
A rede francesa de supermercados Carrefour, por exemplo, a primeira empresa a demonstrar interesse pelo programa, anunciou publicamente sua adesão na véspera da publicação do decreto e muito antes de qualquer comunidade extrativista tomar conhecimento do funcionamento do programa. O presidente do Carrefour América Latina, Noël Prioux, até posou para a foto com o então ministro Ricardo Salles no dia do lançamento do Adote um Parque.
Curiosamente, das cinco empresas adotantes até o momento, o Carrefour (matriz e filiais) é a que tem o maior número de multas ambientais emitidas pelo Ibama: foram sete multas da matriz entre 2005 e 2021 e 87 infrações cometidas pelas filiais entre 1997 e 2021, de acordo com o cruzamento de dados oficiais feito pela Pública. Entre os tipos de infração estão construções sem licença ambiental, a venda massiva de pescados em época de defeso da espécie (período de reprodução, quando é proibida a comercialização) e a venda de espécies de flora e fauna silvestre sem registro prévio. O Carrefour já foi condenado também por vender alimentos com agrotóxicos proibidos e acima do permitido.
A adoção da Resex Lago do Cuniã, uma das mais belas e antigas do país, é uma propaganda vistosa para a empresa contrabalançar a má repercussão de multas e condenações. Entre 2006 e 2020, a Resex, que tem 77.887 hectares de área, apresentou taxa zero de desmatamento, segundo os dados do Prodes publicados pelo ISA. Embora esteja a apenas 80 quilômetros em linha reta de Porto Velho, capital de Rondônia, a reserva só é acessada por barco ou por estradinhas rurais das comunidades no entorno. Para quem não é morador, é preciso autorização do ICMBio para entrar.
Em março passado, a repórter fotográfica Marcela Bomfim visitou a Resex e encontrou, além da paisagem paradisíaca, um clima de grande expectativa e muitas dúvidas entre os moradores. Na Coopcuniã, a cooperativa dos extrativistas, foi recebida por Hadegilton Alves Lopes e Alessandra de Souza Santos, que falaram da esperança de melhoria da produtividade com os recursos do Carrefour. “[As lideranças] fizeram uma lista de materiais, como a despolpadeira de fruta, equipamentos para frigorífico. Se for da forma que a gente viu nas publicações [nas redes sociais], seria bom, porque ajudaria os projetos que a gente tem aqui”, relatou Santos.
O Lago do Cuniã é a única Resex entre as escolhidas para adoção que possui plano de manejo aprovado, o que significa que qualquer atividade a ser desenvolvida ali terá que respeitar os 14 objetivos do plano, entre eles a preservação e conservação dos recursos naturais utilizados pelas populações tradicionais, sendo os principais o jacaré, o pirarucu, o açaí e a castanha-do-brasil.
“Muita coisa iria mudar, esperamos que aconteça”, diz o presidente da cooperativa local, a Coopcuniã, Tito Gonçalves Neves, referindo-se ao que foi prometido na última visita de representantes do Carrefour no final do ano passado.
A reforma do frigorífico de abate do jacaré-açu é o investimento mais esperado. A construção, com forro simples, não se encaixa nas exigências federais, o que impede os cooperados de vender seu principal produto extrativista, como explicou Neves. “Para a gente conseguir o SIF [selo de Serviço de Inspeção Federal] e poder vender carne de jacaré-açu para o Brasil inteiro, precisamos fazer a laje do prédio. Isso custa uns R$ 100 mil. Eu estou falando só uma das coisas que podem acontecer com o investimento do ‘Adote um Parque’”, antecipa o animado Neves.
O plano de trabalho do Carrefour, ao qual a Pública teve acesso, prevê investimentos na cadeia produtiva do jacaré, a “contratação de empresa especializada para a reforma do casarão de secagem da castanha-do-brasil e compra de equipamentos” e a “aquisição de microtrator para o desenvolvimento da agricultura familiar” do Lago do Cuniã, entre outras iniciativas. Segundo Neves, a venda da carne de jacaré-açu para o próprio Carrefour é uma possibilidade já debatida nas mesas de negociação entre a Coopcuniã e a empresa, até mesmo para exportação, uma vez que a rede tem supermercados em outros países.
A implantação de uma base da empresa é proibida pelo regramento atual, que permite a permanência no território apenas de beneficiários e moradores com usufruto na Resex, além de profissionais de educação e saúde, mas alguns temem que os investimentos da multinacional francesa descaracterizem o território ou tenham uma contrapartida futura que ainda não está clara.
“Isso aqui é uma mina de ouro. As empresas vão se beneficiar dos créditos de carbono, do couro de jacarés para as bolsas de grife, das essências florestais, do rico conhecimento tradicional, dos vários produtos da biodiversidade. Eles não estão investindo todo esse dinheiro de graça, em plena crise econômica”, desconfia o educador popular Iremar Ferreira, morador da comunidade vizinha de Nazaré.
A Pública perguntou ao Carrefour se há intenção de a empresa comercializar a carne de jacaré-açu ou validar as ações do programa para o mercado de créditos de carbono. A empresa não respondeu às perguntas, informando apenas que o seu plano de trabalho envolve o ICMBio e o MMA, e que este documento “está em construção e respeitará as características das comunidades tradicionais residentes, as características biológicas do terreno, aspectos históricos, culturais, socioeconômicos e a preservação do território”. Veja a íntegra da resposta aqui. Se firmado, o contrato do Carrefour para a adoção prevê um investimento de R$ 3,8 milhões em um ano.
Menos empolgada do que Neves, Janileia Silva Gomes, presidente da Associação de Moradores do Quilombo do Frechal, no município de Mirinzal, Maranhão, conta que a comunidade levou um susto ao receber a notícia do processo de adoção da Resex pela Heineken, antes de qualquer consulta pela empresa ou pelo ICMBio. Detalhe: a Heineken foi multada recentemente em R$ 83 mi, pelo próprio ICMBio, por causa do licenciamento ambiental acelerado de uma planta da cervejaria que seria instalada ao lado da Área de Proteção Ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa, em Minas Gerais, cujo perímetro apresenta cavidades naturais, reservatório subterrâneo de água e resquícios arqueológicos. A empresa desistiu do empreendimento.
“Minha amiga de São Paulo mandou os documentos pelo WhatsApp perguntando se a gente estava sabendo. Depois a gente foi vendo nas redes sociais, ouvimos a notícia em uma rádio nacional, o povo todo comentando. Ficamos surpresos e preocupados, principalmente os mais idosos da comunidade”, detalha Janileia, jovem liderança há dois anos à frente da associação, sobre a chegada da notícia ao quilombo.
A Resex Quilombo do Frechal foi criada há 29 anos, mas a história de seus moradores atravessa gerações e muitas lutas. Eles são descendentes de famílias escravizadas que trabalharam 230 anos no engenho de açúcar que funcionava no território. A reserva abriga três comunidades quilombolas totalmente integradas ao modo de vida de subsistência do bioma amazônico: Frechal, Rumo e Deserto. Ali os extrativistas pescam, colhem o buriti e o açaí, têm pequenas roças de milho, arroz e mandioca. Produzida manualmente, a farinha de mandioca é a atividade que traz maior renda para as famílias.
O antigo casarão, habitado pelos senhores de engenho que escravizavam seus ancestrais, hoje serve de centro comunitário. Ali funcionam posto de saúde, oficinas e reuniões de movimentos sociais, além de uma biblioteca com documentos e livros sobre a longeva história do quilombo, conhecido mundialmente pelas fotografias da artista belga Christine Leidgens, que retratou a resistência étnica dos quilombolas entre 1989 e 1995.
A manutenção e os pequenos reparos são feitos pela comunidade, mas a precariedade de recursos impede a ocupação mais efetiva. Os que visitam o local são convidados a deixar uma contribuição para o pagamento da conta de luz do casarão, que tem o fornecimento de energia cortado quando o caixa comunitário está vazio. Uma vaquinha foi criada na internet para acabar temporariamente com o mesmo problema em 2019. A ajuda nunca veio.
Além da falta de recursos, os quilombolas enfrentam a pressão de atividades ilegais nos limites da Resex, que reduziu a área original de 10.500 hectares do Quilombo do Frechal para 9.542 hectares nas últimas três décadas. “A gente precisa de fiscalização mais frequente, porque é muita invasão, tem pessoas ao redor que tiram árvores para vender. Sempre pedimos ajuda para o ICMBio, mas eles falam que não têm reforço para vir [fiscalizar]”, desabafa Janileia.
Ela conta que, enquanto entidades e advogados populares faziam alertas sobre a ilegalidade do programa, “só o ICMBio dizia que era uma coisa boa”. E acrescenta: “Mas, se alguém nos falar que é bom, nós não vamos aceitar na hora. A gente tem que dialogar, só nós mesmos podemos dizer se algo é bom ou ruim para nós”.
Foi o ICMBio que sugeriu à Heineken um plano de trabalho para o investimento de R$ 491 mil previsto na proposta de adoção. De acordo com o documento, os recursos da cervejaria devem contemplar quatro linhas de investimento: R$ 126.940,00 para melhorias na infraestrutura da reserva, onde vivem 500 famílias; R$ 234.922,00 seriam destinados a reformas e estruturação do escritório do instituto, cuja equipe é composta por 17 pessoas; e outros R$ 130.020,00 para a estrutura de comunicação da Resex, como compra de computadores e instalação de internet na reserva. Uma divisão de verbas que desagrada à comunidade, mas que, segundo Janileia, poderia ser pior.
“No início, o ICMBio falou pra gente que esse recurso seria para compra de material e equipamento para eles, melhoria do escritório em São Luís, o que caberia para nós eram oficinas e capacitações. Isso a gente bateu contra”, conta. Agora, os recursos que vão diretamente para a Resex preveem a elaboração do plano de manejo e do plano territorial, com zoneamento de uso e ocupação do solo, instalação de iluminação pública e a criação de projetos arquitetônicos básicos para residências das comunidades.
No segundo semestre do ano passado, duas representantes da Heineken, acompanhadas de servidores do ICMBio, visitaram a reserva e dialogaram com a comunidade. “Na última conversa, tanto o representante do Ministério do Meio Ambiente quanto o do ICMBio disseram que pode ser uma questão entre nós e a Heineken. Se a gente precisa de uma melhoria para o casarão, por exemplo, eles contratariam o serviço.”
Outro ponto que incomodava a comunidade e também foi abordado na visita foi o conceito de adoção, que segundo Janileia, soa como definitivo. “Nesta última visita, eles até reconheceram que o nome [do programa] foi errado; tanto o governo quanto a Heineken disseram que ‘Adote um Parque’ não é um bom nome”, detalha. “Quando um casal adota uma criança, é permanente, é para sempre. A gente não quer isso aqui na Resex.”
A Pública perguntou à cervejaria holandesa o motivo da escolha de uma Resex para adoção. A empresa respondeu que tem o “compromisso com a agenda ambiental na preservação de ecossistemas ameaçados e, por se tratar de uma Unidade de Conservação com a presença da Reserva Extrativista, também entende a relevância social e sua contribuição para o desenvolvimento sustentável do país”. Veja a íntegra da nota da Heineken aqui.
Em nota, o ICMBio afirmou que o processo de elaboração dos planos de trabalho parte das áreas técnicas do instituto, como a Coordenação de Elaboração de Planos de Manejo, de Prevenção e Combate a Incêndios e de Fiscalização. A partir das sugestões dessas áreas, a população das reservas pode fazer alterações nos pedidos e apontar outras demandas. Segundo o órgão, a versão final dos planos tem que ser aprovada pela comunidade, um trâmite que estaria ocorrendo em todos os processos de adoção de reservas extrativistas. Ainda segundo o ICMBio, todas as comunidades foram avisadas com antecedência sobre reuniões para esclarecimento do programa e debate sobre os planos de trabalho. O principal canal de divulgação foi por mensagem de texto no WhatsApp. Veja aqui a nota do ICMBio na íntegra.
Empresas que deram entrada nos processos de adoção já se valem do marketing verde para impressionar clientes e investidores. A Geoflorestas Soluções Ambientais, que pretende adotar a Resex Chocoaré Mato Grosso, no Pará, ostenta o selo Adote um Parque em sua página na internet, com a divulgação de ser parceira do meio ambiente, da Resex e da Amazônia. O decreto de Bolsonaro e Salles também permite às empresas a instalação de placas ou qualquer elemento identificador com a própria marca dentro da unidade.
A publicidade verde é importante para a Geoflorestas, empresa que presta serviços de licenciamento, laudos e diagnósticos ambientais e socioambientais. Entre as grandes corporações que a Geoflorestas assessora estão o banco norte-americano Morgan Stanley, financiador das atividades econômicas da Marfrig, também cliente. Em agosto de 2021, a Marfrig, que, como a maioria dos grandes frigoríficos que atuam na Amazônia, é acusada por ativistas de comprar gado de fornecedores ilegais na Amazônia Legal, teve a licença ambiental suspensa por poluir e jogar dejetos no rio Cuiabá.
Bayer e Monsanto, as gigantes dos agrotóxicos e produtos farmacêuticos, também são clientes da Geoflorestas e responderam na Justiça pela acusação de poluir o meio ambiente com danos à vida pelo uso de glifosato em lavouras, substância associada a casos de câncer.
Enquanto a Geoflorestas planejou sua estratégia ao entrar no programa, os moradores da Resex Chocoaré Mato Grosso dizem ter sido surpreendidos com a visita dos representantes da empresa. “Eles ligaram de manhã e no mesmo dia já estavam aqui pedindo para reunir o pessoal, alguns membros do conselho. Mas foi em cima da hora, não deu pra reunir todo mundo. Eles apresentaram um plano de ação elaborado por eles e pelo ICMBio”, relata Mailton Silva dos Santos, tesoureiro da associação.
Indagado se a comunidade pode opinar sobre o direcionamento dos recursos, ele responde: “Em nenhum momento. O plano veio pronto, impresso, para descer goela abaixo”.
A reportagem da Pública entrou em contato com a empresa e com seu representante legal, Marcos Leandro Kazmierczak, várias vezes, por telefone, e-mail e mensagens, mas não obteve resposta.
A MRV Engenharia, conhecida pelos contratos com o governo na área de habitação popular e por seu proprietário, Rubens Menin, ser sócio do canal de TV CNN Brasil, também divulga amplamente suas ações “verdes” e sua parceria com o MMA . Em abril de 2021, a MRV assinou o Protocolo de Intenções para adotar a Resex Marinha Cuinarana (PA), onde vivem 409 famílias, por R$ 550 mil por ano, o que corresponde a 0,1% do lucro líquido declarado pela empresa, que foi de R$ 550 milhões em 2020. A empresa já teve sua razão social cinco vezes vinculada à “lista suja de trabalho escravo” no Ministério do Trabalho.
A assessoria da MRV Engenharia recebeu nossos e-mails com pedido de retorno, com confirmação por telefone. A construtora também não respondeu à Pública.
O setor financeiro também está de olho no programa. Em maio de 2021, representantes da Caixa Econômica Federal anunciaram no site a visita a parques nacionais e Resex. A primeira a ser visitada foi a Resex Marinha de Soure, no Marajó (PA), região que já foi alvo de diversos anúncios de investimento do Ministério da Família e dos Direitos Humanos, até o momento sem concretização.
Segundo os moradores da Resex de Soure, a visita dos representantes da Caixa não foi marcada. “Foi uma surpresa. Eles chegaram e conversamos aqui no pátio da minha casa, uns representantes do ICMBio e umas quatro pessoas da Caixa [Econômica Federal]. Eles diziam que o Adote um Parque vinha para nos ajudar”, conta Patrícia Ribeiro, moradora do Soure. “Mas a gente disse que isso precisava passar pelo conselho deliberativo, e eles não voltaram mais.”
Segundo o ICMBio, o processo referente à Caixa Econômica Federal se encontra na fase de entrega de documentação, ainda sem assinatura do protocolo de intenções.
Na iniciativa privada, a primeira do setor a aderir ao programa foi a cooperativa de crédito Sicoob Coopecredi, que assinou protocolo de intenções sobre a Resex São João da Ponta, no Pará, em 17 de março de 2021. A cooperativa, que é uma das maiores financiadoras do agronegócio no Sul e Sudeste do país, vai pagar pouco mais de R$ 170 mil para adotar a área de 3.408 hectares, uma das menores disponíveis no programa.
Essa, aliás, é uma característica das áreas escolhidas para adoção. Com exceção da Resex Lago de Cuniã, todas figuram entre as menores unidades do programa em área, com tamanho entre 2 mil a 11 mil hectares. Com um investimento pequeno, entre R$ 100 mil e R$ 220 mil, já é possível colher os louros da sustentabilidade e ganhar a estrela de “investimento verde” nas bolsas de valores, atraindo investidores preocupados com a questão climática e ambiental, tendência cada vez mais relevante no mercado financeiro.
Outra característica da maioria das reservas escolhidas é a ausência de um plano de manejo, situação de 58% das Resex do país. De maneira similar ao plano diretor das cidades, esse documento estabelece o zoneamento da unidade e determina as condições sobre como serão usados os recursos naturais, e tem que ser votado e aprovado pela comunidade.
Para o advogado Pedro Martins, da Terra de Direitos, isso fragiliza a comunidade e reforça o papel das empresas. “Acaba sendo uma justificativa da empresa para adotar, como se ela dissesse: ‘Olha, o Estado não tem o dinheiro, mas eu tenho. O ICMBio não vai conseguir fazer muita coisa aqui, mas eu posso. Vamos fazer parcerias para concretizar essa relação?’. Nesse momento de muita legitimidade, porque o decreto dá essa legitimidade, a empresa passa a influenciar diretamente no plano de manejo.”
Moradores de reservas extrativistas entrevistados pela Pública destacaram que os recursos financeiros para estruturação política e organizacional, além da fiscalização ambiental na Resex, estão previstos no orçamento do MMA e, portanto, sua sustentabilidade e proteção não deveriam depender de adoção por qualquer empresa. Além da paralisação do Fundo Amazônia, os extrativistas do Pará e do Acre apontam a interrupção, pelo governo federal, do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia, o Arpa, que durante duas décadas repassou fundos internacionais para conservação do bioma em unidades de conservação. O último ano de relatório de investimentos do Arpa foi em 2019. O programa ainda está ativo.
A Pública perguntou ao MMA o motivo do uso de investimentos privados para unidades de conservação em lugar de recursos públicos ou de fundos não governamentais. O MMA respondeu que os investimentos não são excludentes e que o Adote um Parque ajuda a compor “um portfólio de ações cada vez mais relevante em prol das agendas ambientais”.
Para a antropóloga Mary Allegretti, do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), não há justificativa para o uso de recursos privados. “O que uma Resex precisa é de fiscalização ambiental, uma responsabilidade do poder público que não se pode delegar para a iniciativa privada. O governo tem dinheiro pra isso, inclusive não usa o que tem”, afirma. Em 2021, o Ibama deixou de aplicar quase 60% dos recursos públicos disponíveis para fiscalização. O orçamento público não usado, segundo levantamento do Observatório do Clima, foi de R$ 131 milhões.
A antropóloga não é contra o programa, desde que aplicado apenas em parques nacionais. “Nas Resex, eu vejo totalmente desacreditada essa proposta do governo. Os empresários estão caindo numa cilada, porque apoiar uma unidade de conservação onde os moradores não querem o seu apoio gera um constrangimento. Eles podem ser objeto de crítica, de denúncia, de desqualificação pública”, analisa Mary Allegretti.
Ela conviveu com o extrativista seringueiro Chico Mendes, em Xapuri, no Acre, e participou de inúmeras reuniões com moradores e lideranças no período em que o modelo de Resex estava sendo criado no Brasil. À pergunta sobre o que o seringueiro, assassinado por defender a floresta amazônica, pensaria sobre o programa Adote um Parque, Mary Allegretti responde: “O Chico seria contra”.
*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.
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