Bruno Cavalcanti

CRÍTICA

Elza Soares exala jovialidade em disco póstumo que preserva discurso moderno da artista

Gravado dois dias antes da morte da cantora no palco do Theatro Municipal de São Paulo, álbum precede DVD.

por bruno cavalcanti em 19/05/22 10:38

Elza Soares. Foto: Victor Affaro

Quando saiu de cena aos 91 anos em janeiro deste ano, Elza da Conceição Soares (1930-2022) já ocupava merecido trono do pódio das grandes intérpretes brasileiras. O mesmo trono que lhe fora negado repetidas vezes ao longo de uma carreira repleta de altos e (muitos) baixos. Entretanto, para a cantora que subiu ao palco do Theatro Municipal de São Paulo entre os dias 17 e 18 de janeiro, os revezes de uma vida sofrida já eram passado.

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Desde que virou a mesa em 2015 com o lançamento de A Mulher do Fim do Mundo, álbum em que mergulhou em estética noise dentro do samba feito por músicos paulistanos, Elza nunca mais deixou apagar a chama da fênix que ressurgiu uma vez mais das cinzas – e dessa vez para sempre. 

Entronizada como uma entidade da música brasileira, a artista experimentou a renovação de seu público e pico de popularidade experimentado com pompa e circunstância apenas em meados das décadas de 1960 e início dos anos 70 antes que um relacionamento abusivo e uma sucessão de tragédias familiares abalasse sua trajetória.

Com a trilogia iniciada por A Mulher do Fim do Mundo e completada por Deus é Mulher e o irregular Planeta Fome, Elza experimentou reposicionamento de imagem frente a uma juventude engajada em pautas sociais, de comportamento, gênero e, claro, em discussões como racismo, sexismo, machismo e homofobia.

E é essa juventude que ao entrar em contato com Elza Ao Vivo no Municipal (Deck) vai ter acesso a uma parcela ínfima da obra construída por esta senhora cantora que lançou discos interessantíssimos desde que despontou no mercado fonográfico em 1960 com o álbum Se Acaso Você Chegasse (Odeon), lançado no embalo do sucesso do single homônimo com a canção composta por Lupicínio Rodrigues (1914-1974) e Felisberto Martins (1904-1980) e gravada originalmente por Cyro Monteiro (1913-1973) 22 anos antes.

Foto do final: Silvia Izquierdo

Este é apenas um dos clássicos sambas que Elza repagina neste disco no qual foge ao saudosismo que costuma pautar projetos do gênero. A artista não se priva de voltar a abordar sucessos do quilate de Malandro (Jorge Aragão/ Jotabê) e Salve a Mocidade (Luiz Reis), mas, do alto de seus 91 anos, sabe que nada será como antes, e busca novos arranjos e interpretações para as obras. 

A crônica de Aragão é vertida numa cantiga (herança do show A Mulher do Fim do Mundo), enquanto o samba exaltação ganha ritmo moldado pelas distorções das guitarras pilotadas por Rovilson Pascoal e Ricardo Prado

Ressignificada, A Carne (Seu Jorge/ Marcelo Yuka/ Ulisses Cappelletti) se mantém em ritmo fervente, enquanto Comportamento Geral (Gonzaguinha) mantém a modernidade eletrônica do registro lançado pela artista há três anos em seu álbum Planeta Fome. Estas são duas das canções que intensificam o discurso social bisado pela artista em toda a sua trajetória.

Do final da década de 1970, a artista pesca O Morro (Mauro Duarte/ Ivone Lara), pérola rara de um baú repleto de preciosidades que ganha lufada de ar fresco nas mãos da banda formada por Felipe Roseno e Mestre da Lua (percussão), Lucky Luque (sintetizadores), Thomas Harres (bateria) e os supracitados Pascoal e Prado sob a direção musical de Rafael Ramos – que assina a produção do álbum.

Embora tenha priorizado sua liberdade artística, Elza sempre foi mais potente sob a produção e a direção musical de grandes músicos. Foi assim quando encontrou Zé Miguel Wisnik em 2000 e virou a mesa da música popular ao mergulhar em estética hip hop com o excelente Do Cóccix até o Pescoço, ou quando se jogou na pista sob a produção de Arthur Joly em baticum eletrônico que deu vazão ao interessante Vivo Feliz (2003).

É de Vivo Feliz, inclusive, que Elza pesca Lata D’Água (Elza Soares), canção autoral na qual remete à lata d’água que carregou na cabeça ao longo da juventude e serviu de veículo para conhecer sua potência vocal. Embora tenha registrado, em gravação definitiva lançada no registro do show Beba-Me (2007), o clássico samba homônimo composto por Luiz Antônio (1921-1996) e Jota Júnior (1923-2009) e lançado pela cantora Marlene (1922-2012) há 70 anos, o samba assinado pela compositora bissexta soa mais contundente frente ao discurso da artista.

Capa do álbum. Foto: Victor Affaro

É esse discurso que intensifica a excelente releitura de Dura na Queda (Chico Buarque) e mantém ativo o grito de sobrevivência de Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2015). Entretanto, nem só do discurso sobrevive Elza Ao Vivo no Municipal. Elza ainda é a sambista cheia de gingado que revolucionou a música popular ao injetar o jazz no samba sem perder sua brasilidade.

Ecos desta intérprete suingante ressurgem em Lata D’Água, Balanço Zona Sul (Tito Madi) e em Saltei de Banda (Zé Rodrix/ Luiz Carlos Sá), o melhor registro do álbum e a melhor lembrança deste disco repleto de pontos altos. O samba rock Saltei de Banda comprova que a artista se manteve fiel ao sambalanço pelos versos de Rodrix e Sá.

Ainda que escorregue em interpretação protocolar (Banho, de Tulipa Ruiz), Elza Ao Vivo no Municipal chega ao fim com o canto de Elza Soares ainda tinindo aos 92 anos enquanto clama para cantar até o fim ao som de Mulher do Fim do Mundo (Rômulo Fróes/ Alice Coutinho). É sintomático que a artista encerre de forma apoteótica seu registro no palco do Theatro Municipal, um anticlímax à abertura quase camerística ao som de Meu Guri (Chico Buarque) em interpretação dilacerante de voz e do piano de Fábio Leandro.

Meu Guri abre o disco, mas, com a mesma potência, poderia ser a canção derradeira, atestando a potência da voz vitoriosa de Elza Soares, intérprete que, sem os percalços que a vida, o machismo e o racismo estrutural que o Brasil lhe impuseram poderia ter sido há muito mais tempo aquilo que Elza Ao Vivo no Municipal atesta: a maior intérprete da música popular tupiniquim.

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