Proprietária em região de conflito com os Guarani-Kaiowá, senadora já defendeu indenizações em dinheiro para fazendas em áreas indígenas e suspensão de demarcações.
por Por Vasconcelo Quadros da Agência Pública em 05/07/22 13:46
Simone Tebet não herdou apenas o legado político do pai, o ex-ministro e ex-presidente do Senado Ramez Tebet. Falecido em 2006, Tebet deixou aos quatro filhos uma fortuna em imóveis no Mato Grosso do Sul, entre os quais estão três fazendas, uma em Três Lagoas, outra em Fátima do Sul e uma terceira em Caarapó, a Santo Antônio da Matinha, de 860 hectares, no extremo sul do estado, registrada entre os bens da senadora pelo modesto valor de R$ 457 mil. Segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), o imóvel faz parte de uma grande extensão de terras reivindicadas pelos índios Guarani-Kaiowá, a Tekoha Pincorock, na Terra Indígena (TI) Amambaipeguá, em Caarapó. A portaria que daria início à demarcação e à homologação, elaborada pela Funai, foi publicada no final do governo da ex-presidente Dilma Rousseff, mas engavetada nos governos posteriores. Na área estão cerca de 80 fazendas cuja posse é questionada pelos indígenas.
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As terras da senadora integram o circuito dos históricos conflitos entre ruralistas e indígenas, que no dia 24 de junho passado, em Amambai, no sul do estado, resultaram na morte de Vito Fernandes, de 42 anos, e outros oito feridos, por uma tropa de choque da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul, numa operação legalmente questionável, já que a atribuição de atuar em conflitos envolvendo indígenas é da Polícia Federal (PF). Caarapó foi palco também de outros ataques: um deles, em junho de 2016, na fazenda Yvu, que fica na mesma área das terras de Simone Tebet, onde um grupo de fazendeiros, ocupando mais de 40 caminhonetes, disparou contra indígenas, matando um deles, Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos, e deixando outros oito feridos.
Como senadora, Simone também se colocou contra as reivindicações dos Guarani-Kaiowá. Uma publicação do Cimi, de setembro de 2018, lista Simone Tebet entre os 50 parlamentares, 10 senadores e 40 deputados, que mais atuaram contra os direitos indígenas no Parlamento. O destaque é para o Projeto de Lei 494/15, apresentado ao Senado, que visa alterar a Lei nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, com o objetivo de interromper qualquer ato de demarcação em “caso de turbação, esbulho ou ocupação motivada por conflitos” nos dois seguintes anos à sua desocupação. Segundo a publicação, ela apoia também a PEC 45/13, que altera o artigo 231 da Constituição Federal, para vedar a demarcação de terras indígenas em áreas tradicionais. Simone Tebet já defendeu o cumprimento imediato das reintegrações de posse de áreas que ainda não têm estudos antropológicos e a indenização em dinheiro (e não em títulos da dívida agrária) sobre benfeitorias e também sobre a terra nua, item nunca considerado pelo governo nos casos de desapropriações em terras indígenas.
Desde que se consolidou candidata, a senadora procura passar uma imagem mais “ambientalista”, numa estratégia que tem rendido mais dissabores do que resultado. Há poucos dias, sua assessoria foi bloqueada pela Wikipédia, ao tentar mexer em seu perfil, acrescentando trechos sobre suas propostas. A mesma tentativa teria sido feita com o Cimi, onde, segundo a entidade, assessores dela pediram, sem sucesso, que seu nome fosse retirado da publicação em que é citada entre os parlamentares contrários aos direitos indígenas.
O problema é que o histórico de vida pública inclui a senadora no grupo que defende e mais se beneficia do ruralismo. O levantamento do Cimi sobre as doações que a então candidata ao Senado recebeu em 2014 aponta, com base na lista do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, de um total de R$ 3.239.893,61 recebidos para a campanha ao Senado, R$ 2.840.000,00 são originários dos grupos ligados ao agronegócio que ela defende. Segundo registrado na página de doadores do TSE, as maiores contribuições foram da JBS (R$ 1.720,000,00), Iaco Agrícola (R$ 700 mil), Rio Claro Agroindustrial (R$ 300 mil), Usina Eldorado (R$ 70 mil), Construtora J. Gabriel (R$ 70 mil) e Copersucar (R$ 50 mil).
Marido da senadora, o deputado licenciado Eduardo Rocha, atual secretário de Governo do Mato Grosso do Sul, levado à política por ela, também fez investidas contra o indigenismo. No exercício do mandato, ele foi um dos principais estimuladores da CPI do Cimi, investigação parlamentar aberta em 2015 na Assembleia Legislativa do estado para criminalizar a atuação das entidades que amparam a causa indígena, sob a acusação, nunca comprovada, de que eram as ONGs que organizavam as invasões. A CPI se transformou numa escancarada defesa dos latifundiários que ocupam áreas de conflito reivindicada pelos indígenas e acabou arquivada.
Aos 52 anos, advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com especialização na PUC de São Paulo, professora de direito, ruralista, prefeita por dois mandados em Três Lagoas, Simone tem uma trajetória parecida com a do pai, que também iniciou a vida pública como prefeito de Três Lagoas, berço do clã. Ambos foram deputados estaduais e vice-governadores e se elegeram para o Senado pelo MDB, sem nunca terem disputado eleição para a Câmara dos Deputados.
Uma pesquisa da advogada e geógrafa Luciene Maria da Silva, divulgada em abril na revista Campo e Território, em um artigo escrito em parceria com o professor e pesquisador Thiago Araújo dos Santos, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), situa a senadora e seu pai como uma das três oligarquias políticas tradicionais do estado. Segundo o estudo, esse seleto grupo há décadas articula a atuação legislativa no Senado com demandas agrárias para garantir o controle privado das terras públicas à elite rural, base dos conflitos que pipocam no estado envolvendo fazendeiros contra indígenas e camponeses.
“Simone se pronuncia pelo direito, tentando imprimir um caráter de ruralista moderna, mas defende no Senado a elite rural e seus próprios interesses”, disse Luciene à Pública. Ela afirma que, assim como a filha, Ramez Tebet nunca declarou a condição de proprietário rural, mas, na lista de bens informados ao TSE na última eleição de que participou, informou ser dono de dez propriedades rurais. Os dois, segundo ela, sempre atuaram no comando de comissões do Senado por onde passam decisões fundiárias, como a de Assuntos Econômicos, Agricultura e Reforma Agrária, e de Constituição, Justiça e Cidadania, que chegou a ser presidida por Simone.
Filiada ao PT, Luciene chegou a ser sondada para sair candidata a prefeita de Três Lagoas e foi candidata a vice ao governo em 2018. Sua dissertação de mestrado, aprovada, incluiu as famílias Coelho e Corrêa da Costa, esta última berço da ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP). Segundo afirma, são “três oligarquias políticas tradicionais do estado, que combinam, de modo orgânico, ativa atuação no Senado Federal com imbricação relacionada à terra e aos conflitos territoriais envolvendo camponeses e indígenas”.
Até a metade do mandato de Bolsonaro, Simone votou com o governo em 86% das matérias que tramitaram no Senado, apoiando inclusive o projeto que estendeu porte e posse de armas em todo o perímetro das propriedades rurais. A senadora só se afastou do governo quando assumiu uma das vagas femininas na CPI da Covid, onde teve seus melhores momentos ao arrancar do deputado Luiz Miranda (Republicanos-DF) a revelação de que era o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (DEM-PR), a quem Bolsonaro se referia como suposto envolvido em suspeitas negociatas sobre a compra da vacina Covaxin.
Simone ganhou visibilidade na CPI da Covid, mas perdeu prestígio entre os grupos políticos que dominam o estado e enfrenta reação do ruralismo conservador, do qual ela faz parte, mas que hoje é fiel ao presidente Jair Bolsonaro. “Por causa das posições dela na CPI da Covid, entre os bolsonaristas não terá um voto sequer. Cada um tem que colher o que plantou”, disse à Pública o deputado estadual Capitão Contar (PRTB), ex-capitão do Exército, pré-candidato ao governo e a nova cara da direita bolsonarista no estado.
A desenvoltura de Simone na CPI coincidiu com a eleição do deputado Baleia Rossi (SP) para a presidência do MDB, que prometeu que a legenda disputaria as eleições presidenciais deste ano com candidatura própria. Depois de ter convencido a própria senadora, Baleia foi um dos principais articuladores dos prometidos apoios do PSDB e do Cidadania, que devem sustentar o senador Tasso Jereissati (CE) como companheiro de chapa da emedebista.
Para ele, o grande desafio da senadora é tornar-se mais conhecida, tarefa que o partido começou a desempenhar com as inserções eleitorais nos programas de rádio e TV. “A candidatura da Simone Tebet ajuda a valorizar o que o MDB tem de melhor, que é a defesa da democracia, da diversidade, do equilíbrio e da justiça social”, afirma o presidente da legenda.
Ao decidir-se pelo nome de Simone, o maior ganho do MDB foi evitar que o partido caísse na tentação de apoiar a candidatura de Bolsonaro, abrindo caminho para uma composição formal com Lula num eventual segundo turno. A senadora sabe, no entanto, que, a não ser por algum evento ainda não prospectado pelos institutos de pesquisa, se não ultrapassar o candidato do PDT, Ciro Gomes, e ameaçar a polarização entre Lula e Bolsonaro, está pondo em risco sua carreira política.
No Mato Grosso do Sul, ela não tem a garantia nem do partido. Seu marido, Eduardo Rocha, também do MDB, pediu licença do mandato de deputado estadual para tornar-se homem forte e um dos principais operadores políticos do governo do tucano Reinaldo Azambuja, adversário histórico do MDB local, em franco namoro com Bolsonaro e alvo de críticas das entidades indigenistas pelas ações da PM contra os Guarani-Kaiowá em Amambai em apoio a ruralistas.
Azambuja quer fazer seu sucessor o secretário de Infraestrutura de seu governo, Eduardo Riedel, biólogo, zootecnista e, como todos os políticos bem-sucedidos no estado, um fazendeiro que já declarou seu apoio à candidatura da ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP) ao Senado e a Bolsonaro. Os tucanos do Mato Grosso do Sul devem migrar em bloco para a campanha de Bolsonaro, e a senadora Simone Tebet não tem apoio de nenhum dos candidatos a governador mais bem colocados, nem mesmo do ex-governador André Puccinelli, do MDB, que, conforme as pesquisas eleitorais, lidera a disputa.
Puccinelli é cria do pai de Simone, o ex-ministro e ex-presidente do Congresso Ramez Tebet. Já no leito de morte em 2006, o então senador chamou Puccinelli à sua casa e fez a ele um dos últimos apelos em vida: que o então governador amparasse Simone, cuidando da carreira política da filha, que, então no primeiro mandato como prefeita de Três Lagoas, base do clã Tebet, ainda engatinhava na política. “A versão que procede é a de que o Ramez no leito da morte, com ela presente, pediu que Simone se tornasse minha filha política e me obedecesse”, corrige Puccinelli, rindo sobre a rebeldia da então pupila.
Nas eleições de 2010, a tiracolo de André Puccinelli, Simone elegeu-se vice-governadora e, em 2014, conquistou uma das vagas ao Senado. A relação entre os dois estremeceu irremediavelmente em 2018, quando Puccinelli, alvo de dezenas de processos por corrupção, foi preso pela segunda vez pela PF. Desgastado, ele implorou, sem sucesso, para que Simone saísse candidata ao governo. Simone deu às costas, permitindo que o tucano Reinaldo Azambuja se reelegesse e, ao longo do segundo mandato, cooptasse deputados estaduais do MDB em troca de cargos em seu governo, entre os quais está justamente o marido de Simone.
A vingança não tardou. Hoje líder nas pesquisas, Puccinelli não reconhece a afilhada como candidata. “Será que ela será mesmo candidata? Vou aguardar as definições no quadro nacional para tomar uma decisão a posteriori”, desconversa Puccinelli, que toca sua campanha sozinho, com a ala emedebista fiel ao seu lado, mas liberando os correligionários para votar em quem quiserem para presidente desde que, é claro, não deixem de fazer campanha para ele.
Na polarizada disputa entre Bolsonaro e Lula, a metralhadora da senadora tem disparado também contra este último, dando eco à Operação Lava Jato, responsabilizando o PT pela corrupção que, no caso da Petrobras, apanhou também líderes de seu próprio partido, como o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e o ex-deputado Geddel Vieira Lima, o político que guardava a bagatela de R$ 51 milhões num apartamento em Salvador.
Como prefeita de Três Lagoas entre 2005 e 2010, ela chegou a responder por crime de responsabilidade, acusada em dois inquéritos originários de levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU) sob suspeitas de fraudes em licitações para beneficiar uma empresa, a Anfer Construções e Comércio, em concorrência por obras de revitalização de um balneário da cidade bancadas com recursos federais. Ela foi acusada de desvio de dinheiro supostamente usado em campanha eleitoral. Eleita senadora, com foro privilegiado, os casos foram parar no Supremo Tribunal Federal (STF), onde acabaram arquivados por prescrição, quando o processo é encerrado por extrapolação do prazo de tramitação, mas sem entrar no mérito das acusações.
A Pública pediu diversas vezes entrevistas à senadora e chegou a encaminhar uma relação de perguntas sobre as questões abordadas, mas, apesar do prazo de três dias, até o fechamento desta reportagem, sua assessoria não respondeu.
Em entrevistas concedidas recentemente, a candidata diz ter convicção de que melhorará seu desempenho nos próximos 90 dias e estará no segundo turno. No MDB, fontes ouvidas pela Pública avaliam que o desafio de Simone é difícil, mas acham que ela crescerá e acumulará capital político para negociar seu apoio num eventual segundo turno entre Lula e Bolsonaro. Nesse caso, embora tenha estado próxima a Bolsonaro no início do governo, a tendência seria superar as mágoas contra o PT. Na entrevista à jornalista Renata Lo Prete, do podcast O Assunto, no G1, em 20 de junho passado, ela deixou a porta entreaberta ao responder sobre seu destino caso não chegue ao segundo turno: “Vou estar no palanque defendendo a democracia e propostas”, disse ela, depois de considerar que os sucessivos ataques do presidente ao sistema eleitoral é uma tentativa de fragilizar a democracia. “Quem quiser o apoio da coligação vai negociar com a Simone, e não com os partidos”, disse à Pública uma fonte do MDB, sugerindo que, caso se alie ao vencedor, a candidata pode “cair para cima”, se cacifando, eventualmente, para um alto cargo federal.
“Aqui a Simone nem se reelegeria. A vaga do bolsonarismo é da Tereza Cristina, a queridinha do agronegócio”, diz o jornalista e publicitário Henrique de Medeiros, presidente da Academia de Letras do Mato Grosso do Sul, provável candidato do PV ao Senado.
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