Uma reforma política é necessária para por fim à orgia com recursos públicos, mas parece utópica, afinal a proposta teria que ser aprovada pelos mesmos deputados e senadores que se beneficiam com as atuais regras
Em 04/02/24 17:55
por Conversas com Cid
Cid de Queiroz Benjamin é um jornalista e político brasileiro. Nos anos 1960 e 1970, militou na luta armada, tendo sido dirigente do movimento estudantil em 1968 e integrante da resistência à ditadura militar, responsável pelo setor armado do Movimento Revolucionário Oito de Outubro.
Câmara e Senado aprovaram regulamentação do novo Fundeb. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
“Se as coisas são inatingíveis, ora, / Não é motivo para não querê-las / Que tristes os caminhos se não fora / A presença distante das estrelas” (Mário Quintana). Entre as coisas inatingíveis, pelo menos num futuro próximo, estão utopias: uma delas, a aprovação de uma reforma política que aperfeiçoe as instituições e ponha fim à orgia com os recursos públicos. Afinal, para entrar em vigência a proposta teria que ser aprovada pelos mesmos deputados e senadores que se beneficiam com as atuais regras e que, em sua maioria, não são exatamente exemplos de espírito público.
Para começar, reconheçamos que foi um avanço o fim do financiamento de empresas nas campanhas eleitorais. Mas terá isso trazido uma diminuição sensível dos gastos e da influência do poder econômico? Não.
Basta ver o antigo orçamento secreto, exemplo de falta de transparência, que não acabou de todo, ainda que tenha recebido outro nome. Ou examinar a continuação das emendas individuais impositivas, inteiramente questionáveis do ponto de vista ético. Continua-se a se gastar rios de dinheiro público, a cada eleição. Quase sempre atendendo a interesses particulares de parlamentares que disputam a reeleição.
Os recursos do Fundo Eleitoral, destinado às campanhas deste ano — que são apenas municipais — alcançam o absurdo de R$ 4,96 bilhões. E quem decide o montante desse fundo são os beneficiários dos recursos. É a raposa cuidando do galinheiro.
Que o leitor não se assuste, mas vale a pena ver quanto cada partido vai receber este ano para a campanha. São números proporcionais a suas bancadas na Câmara, mas assustadores: PL – R$ 863 milhões; PT – R$ 604 milhões; União Brasil – R$ 717 milhões; PSD – R$ 427 milhões; PMDB – R$ 410 milhões; PP – R$ 406 milhões; Republicanos – R$ 331 milhões; Podemos – R$ 249 milhões; PDT – R$ 171 milhões; PSDB – R$ 156 milhões; PSOL – 127 milhões; Solidariedade – R$ 70 milhões; PRD – R$ 84 milhões, Avante – R$ 74 milhões; Cidadania – R$ 64 milhões.
É possível alguém sustentar publicamente o pagamento desses valores? Não por acaso eles não são amplamente publicizados pelos partidos ou pelos presidentes da Câmara e do Senado. Não chegam a ser segredo de Estado, mas são tratados da forma o mais discreta possível. E que não se venha com o argumento canhestro de que este é o preço da democracia. Não é. Democracia não implica farra com recursos públicos.
Vale a pena, então, pensar numa proposta utópica. Por que não se caminhar para um modelo em que a liberdade de organização partidária conviva com a extinção gradual, ou pelo menos com uma expressiva redução, dos fundos partidário e eleitoral?
O sistema político poderia ter no horizonte uma situação em que o financiamento das atividades dos partidos e de suas campanhas eleitorais se desse essencialmente por meio de doações de seus filiados e simpatizantes. E isso, claro, respeitado um teto para cada doação, que seria devidamente declarada à Receita. Um mecanismo assim evitaria que milionários alavancassem determinadas legendas e ampliaria o número de financiadores e de participação da população. A democracia e os partidos seriam fortalecidos, o que contribuiria para sanear nosso sistema político.
É até razoável que a transição para uma situação assim fosse feita de forma gradual. Mas teríamos um rumo, um objetivo, um ponto de chegada.
Do jeito em que são as coisas, criar partido, ou assumir a direção de algum já existente, pode se transformar numa lucrativa iniciativa, mais ou menos como é criar uma dessas igrejas de negócios, de pastores picaretas que têm atividade econômica e não pagam impostos. E, como disse o grande Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai: “Quem no capitalismo quiser ganhar dinheiro, que ganhe, é do jogo, mas longe da política”.
E já que falamos na utopia e na necessidade de tê-la sempre presente nos nossos passos, tanto na vida, como na política, encerro este artigo com a reflexão de outro uruguaio que admiro: o escritor Eduardo Galeano. Respondendo a uma pergunta a respeito do que servia a utopia, ele disse:
“A utopia está lá no horizonte / Me aproximo dois passos / Ela se afasta dois passos / Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos / Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei / Para que serve a utopia? / Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
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