Prevaleceu a ideia segundo a qual o Itamaraty poderia ser um parque de diversões da extrema-direita sem maiores consequências
por Creomar de Souza em 29/03/21 13:26
O Itamaraty nunca foi um ministério particularmente cobiçado. Controla uma fatia ínfima do orçamento federal, não possui cargos de livre provimento que permitam oferecer cabide de empregos, tem impacto reduzido nos chamados currais eleitorais. Ulysses Guimarães teria dito, a certa altura, que o Itamaraty só dá votos em Moçambique, provavelmente uma referência aos programas de cooperação técnica pilotados pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do ministério.
Isso mudou paulatinamente e não em benefício dos interesses do país. A política externa passou a ser parte central da guerra de narrativas. Não é casual que no atual governo o Itamaraty tenha se tornado uma ponta de lança da chamada guerra cultural, ao passo que sua outrora respeitada Fundação Alexandre de Gusmão tenha se transformado na trincheira dessa guerra, dando guarida a teorias conspiratórias, produtores de fake news, militantes monarquistas e toda uma fauna de personagens sem credenciais acadêmicas, porém ativos nas redes sociais.
O Itamaraty virou peça-chave nesse esquema por conta da importância estratégica da chamada guerra cultural na visão dos militantes olavistas, para quem a luta contra o comunismo é uma luta internacional, daí a necessidade de aliar-se não com países específicos, mas com as forças políticas conservadoras que se opõem ao globalismo: Trump, Orbán, Salvini e companhia. De certa forma, isso contradiz a visão de Ulysses, já que o Itamaraty passou a dar votos, ainda que entre os militantes mais exaltados, porém considerados fundamentais no esquema de mobilização política do presidente Bolsonaro.
Os políticos tradicionais, empresários, banqueiros, alguns articulistas de jornal e até militares sempre torceram o nariz para a condução ideológica da nossa diplomacia, mas não encararam o problema de frente. Prevaleceu a ideia segundo a qual o Itamaraty poderia ser um parque de diversões da extrema-direita sem maiores consequências; ao contrário, por exemplo, do Ministério da Economia e outras pastas mais técnicas, como Minas e Energia e Infraestrutura. Por isso, a pressão para mudanças de rumo na diplomacia demorou a aparecer. E isso tem a ver também com os tempos da diplomacia.
Ao contrário do tempo da política, da economia e do ciclo de notícias, a diplomacia trabalha em outro diapasão e seus erros e acertos são menos evidentes do curto prazo. Colhe-se o que foi semeado, mas não imediatamente. Foi preciso uma crise aguda múltiplas dimensões para que nossa elite se desse conta, quase que no susto, que a política externa equivocada de queimar pontes gratuitamente e subordinar suas escolhas a preferências ideológicas tem custos exorbitantes diante da emergência nacional que vivemos.
É como se num belo dia acordássemos com uma chuvarada na cabeça e nos déssemos conta, então, que um teto faz falta, ainda que a previsão fosse de tempo bom e sol inclemente. Hoje, finalmente, estamos acordando para o fato de que uma diplomacia profissional e uma política externa que defenda nossos interesses nacionais, pautada pelos princípios constitucionais, não é um luxo, mas uma necessidade básica.
Será difícil e trabalhoso reconstruir o teto que nos abriga das intempéries internacionais e resgatar a diplomacia profissional que foi escanteada nos últimos tempos e deu lugar às sandices de uma facção extremista. Mas realizar esse ajuste é mais urgente no que nunca se quisermos ter capacidade de atender nossas necessidades de acesso a insumos, vacinas, capitais e tecnologia, de modo a garantir a saúde e a prosperidade de nosso povo.
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