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Creomar de Souza

Bestializados

Diante de uma situação marcada pelo crescimento da ideia de que o caos é uma forma de fazer política, partes cada vez maiores da sociedade observam o desdobramento dos fatos abismada. Quase dois séculos após a independência, o povo segue observando os desdobramentos políticos bestializado

por Creomar de Souza em 18/10/21 11:54

O sistema político brasileiro vive um impasse. De um lado, aqueles que apoiam a interrupção do processo democrático, apesar das capacidades de mobilização popular, e ainda não possuem os meios de força para fazê-lo. De outro, aqueles que teoricamente fazem oposição aos primeiros se baseiam em uma premissa arrogante de que é possível compor e construir diálogo com aqueles que reiteradamente demonstram que só há conversa quando esta se inicia com um ato de submissão à sua vontade. Em meio a este processo, a parcela da população que mais sofre com a incapacidade do sistema em resolver seus problemas cotidianos assiste a tudo bestializada.

A referência à obra seminal de José Murilo de Carvalho se faz fundamental para que se possa abordar um problema basilar da lógica política nacional, o fato de que decisões importantes são tomadas por um pequeno grupo de pessoas que se arrogam intérpretes das vontades do todo. Todos os processos de interrupção abrupta da regra do jogo de 1889 até 1964 possuem como traço comum o fato de que se antes de tudo nos interesses de pequenos grupos travestidos de retórica universalista. E o povo normalmente é um mero detalhe na equação do cálculo estratégico que se segue.

Obra 'Os bestializados' (2019), do autor José Murilo de Carvalho
Obra ‘Os bestializados’ (2019), do autor José Murilo de Carvalho. Foto: Divulgação

O 07 de setembro de 2021 não é um ponto diferencial neste aspecto. Não se trata aqui de negar a realidade ou de usar gírias do mundo virtual para descaracterizar o que se viu nas ruas. O fato é que a narrativa do Presidente colocou uma quantidade considerável de pessoas nas ruas. Talvez, menos do que os sonhos daqueles que desejam uma versão tropical da Marcha sobre Roma ansiavam, porém, certamente mais do que se desejaria quando os olhares se colocam em direção de uma série de problemas urgentes que são insistentemente postos de lado em favor de uma cruzada contra moinhos de vento.

O fato é que o atual jogo de forças caracteriza um dilema. Bolsonaro ainda não possui os meios para avançar sobre o STF e o STF não possui o suporte do legislativo, nem do Ministério Público Federal para se proteger dos ataques do Presidente. Diante desta situação, que pode lembrar uma bang bang italiano ou mesmo uma cerimônia de suicídio coletivo, os atores institucionais parecem incapazes de apontar soluções aos problemas. Ao seguirem, portanto, em posições inamovíveis, abre-se espaço para dois vetores perigosos, o medo e a violência.

Estas características, sempre muito bem utilizadas por aqueles que querem se colocar como lideranças superiores à regra do jogo possuem um ponto pouco explorado. À medida que uma liderança estimula continuamente a ideia de que o radicalismo é um instrumento válido, qualquer ação ao movimento feito por ela em sentido contrário pode ser interpretada pelos seguidores como um sinal de traição a causa e aos seus princípios. Neste sentido, a lógica implementada até aqui pelo Presidente e seus apoiadores, com a anuência de seus aliados institucionais, de que só há democracia quando suas vontades são cumpridas gera um risco ao todo.

E o risco está na ideia de que ao alimentar na turba a ideia de que há um inimigo inconteste de seu destino idílico, crie-se uma espiral de quebra de compromissos. Uma quebra forjada, sobretudo, por novas lideranças que construam seu próprio caminho e que enxerguem inclusive em Bolsonaro apenas mais um, um mero fantoche de uma causa que não é dele e sim do “povo”. Afinal, se há algo que processos de terror conseguem construir com grande qualidade são candidatos a Robespierre e estes, nada mais são do que oportunistas que em um dia inflam as massas contra seus rivais, mas, que no dia seguinte, podem simplesmente estar a dois passos do cadafalso da história.

O dilema do tempo presente, portanto, tende a cobrar seu preço em vidas, responsabilidades e grandeza. E, provavelmente, ao final do dia pouco iluminado que estes tempos representam, aqueles que recolherem os cacos da erosão do pacto institucional de 1988 terão a árdua tarefa de contar aos seus filhos e netos os motivos que justificaram um avanço tão abrupto da ignorância e do egoísmo. Na ausência de mulheres e homens de estado, o futuro do país recairá nas mãos daqueles que melhor se utilizarem dos impulsos mais primitivos de uma massa turbinada pela ideia de que o amanhã reside na escolha de um novo Dom Sebastião.

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