Ações da empresa que estão na carteira do BNDES podem ser vendidas para garantir a diluição do controle do Estado. Governo quer atingir um patamar de diluição de controle de 45% para dificultar uma eventual tentativa de reestatização.
por Arthur Koblitz* em 08/06/22 20:52
O BNDES aderiu à oferta pública de distribuição primária de ações de emissão da Eletrobras. Em outras palavras, as ações da empresa que estão na carteira do Sistema BNDES serão vendidas, se necessário, para garantir a diluição do controle do Estado. O governo quer atingir um patamar de diluição de controle de 45% para dificultar uma eventual tentativa de reestatização da Eletrobras que já foi sinalizada, com diferentes graus de ênfase, pelos dois principais adversários do presidente Jair Bolsonaro nas eleições deste ano.
Dois papéis diferentes do BNDES se mesclaram no processo de privatização da Eletrobras ora em curso. De um lado, o BNDES presta serviço para o governo como agente da privatização, contratando e supervisionando consultorias e instituições financeiras que elaboram o processo de privatização. Agiu assim, por exemplo, no caso recente da CEDAE. O outro papel do BNDES que não tem nada a ver com privatização é o de detentor de uma carteira de ações que deve ser gerida de modo a gerar o maior valor possível para o próprio BNDES.
Como agente de privatização o BNDES presta o serviço requerido pelo governo federal. Ele não examina se a privatização é boa ou não para o país, simplesmente toma como dada a decisão do governo que o contratou para realizá-la da melhor maneira possível.
Como detentor de sua carteira de ações, o BNDES tem que encontrar justificativa para suas decisões na busca de garantir valor para o banco.
Nesse segundo papel, note-se, o BNDES deve agir de forma independente, autônoma do governo federal, como prescreve a Lei das Estatais. O BNDES não pode, por exemplo, sofrer perdas na sua carteira de ação mesmo que seja para atender metas que o governo federal considere desejáveis. Especificamente, se houvesse expectativa de queda do valor das ações com a privatização, o BNDES na sua atuação como gestor de carteira, estaria ferindo a lei das Estatais se atuasse para viabilizar a privatização, ou seja, se participasse da oferta primária. Ele estaria fazendo uma ação que destruiria valor do BNDES como empresa, destruição equivalente a perda de valor das ações remanescentes na carteira do Banco após a privatização.
É expectativa amplamente compartilhada no mercado que as ações da Eletrobras irão se valorizar com a privatização e isso parece justificar a atuação do BNDES como vendedor de ações. Na verdade não é bem assim.
Vamos assumir que a expectativa do BNDES é de que as ações subirão de preço após a privatização. Nesse caso, se o BNDES vender ações durante a privatização ele deixará de obter ganho de capital em proporção à sua participação no processo de privatização. Quanto mais ações o BNDES vender, mais deixará de ganhar com a assumida expectativa de valorização das ações após a privatização.
O raciocínio acima indica que o BNDES, enquanto possuidor de ações da Eletrobras, deveria ficar fora do processo de privatização. Ele incorre em perdas nos dois cenários, de aumento e de queda do valor das ações após a privatização.
O cálculo de perdas e ganhos se complicaria se o governo federal dependesse das ações do BNDES para viabilizar a diluição do controle estatal no montante desejado, mas esse não é o caso. O governo federal possui ações suficientes para privatizar a empresa.
Esse não é o único conflito potencial do Banco atuar na privatização com esses dois papéis (de consultor da privatização e de gestor da carteira de ações). Como consultor da privatização o Banco contratou duas consultorias que fizeram um valuation da ação, ou seja, determinaram um preço mínimo de venda. Mas como gestor da carteira de ações o BNDES possui seus próprios procedimentos para realizar o valuation dessas ações. Entre esses procedimentos estão as premissas assumidas sobre crescimento futuro do PIB, a taxa de desconto a ser usada, etc. Essas premissas são assumidas nos valuations feitos sobre todas ações na carteira do BNDES e é a forma que o Banco encontrou de dar coerência a sua atuação como gestor da carteira. Em contraposição, as consultorias contratadas pelo BNDES no seu papel de agente da privatização, não necessariamente foram obrigadas a adotar as mesmas premissas. Ou seja, o BNDES como gestor da carteira de ações foi submetido ao trabalho contratado pelo BNDES como agente da privatização.
Administradores exercendo a função prescrita pela Lei das Estatais deveriam se negar a vender ações do BNDES durante a privatização. Porque o governo demanda que as ações do BNDES sejam vendidas ao invés das suas não é totalmente claro, mas há rumores de que o governo teria problemas operacionais com a Lei dos Precatórios que aprovou.
Provavelmente antecipando os conflitos apontados anteriormente, o presidente da República, em cima da hora, em abril, no dia da mentira, decidiu publicar um decreto transferindo as ações da carteira do BNDES para o Programa Nacional de Desestatização. Qual o objetivo aqui? Evitar que se submeta a venda das ações da Eletrobras à análise apresentada acima, que sugere que o BNDES não deve vender suas ações durante a privatização! Esse decreto não tem força para suplantar a Lei das Estatais. O que ele faz é deixar ainda mais explícita a tentativa de abuso de poder do governo federal sobre uma empresa por ele controlada.
Seria concebível que o BNDES aceitasse eventuais perdas na manutenção de sua carteira, se as mesmas fossem voltadas para atingir metas de desenvolvimento. Mas o BNDES não examinou os impactos da privatização para o desenvolvimento do país. Não era essa sua função como mero prestador de serviços. Ele não foi consultado sobre isso e não se debruçou sobre o tema.
A privatização da Eletrobras é a conclusão de uma tragédia brasileira. Talvez houvesse entusiasmo genuíno nos anos 90 com as promessas da privatização. Mas depois de 30 anos de privatização, ao invés de tarifas reduzidas, vimos o país se transformar em campeão mundial de tarifas. É difícil acreditar outra razão para entusiasmo que não o da turma que vai lucrar com a transação.
Mesmo para os que ainda são favoráveis à privatização, a forma específica que se escolheu de realizá-la desperta indignação. Todas as indicações são de que o preço da energia elétrica aumentará ainda mais devido as exigências de instalação de termelétricas, empobrecendo o povo e destruindo a competitividade das nossas empresas. Ontem o governo anuncia que criará um subsídio para o Diesel e o gás até dezembro de valor idêntico a arrecadação que obterá com a venda da Eletrobras. Se a economia é orientada pelo curto-prazo, a política é pela demagogia eleitoreira mais descarada.
Não acredito que o BNDES tenha qualquer razão para acreditar que a privatização da Eletrobras será boa para o desenvolvimento do país.
(*) Economista, presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES) e membro eletivo do Conselho de Administração do BNDES.
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